domingo, 31 de dezembro de 2023

amor.

queria lhes fazer entender as diferentes possibilidades do amor.

ando pensando...

não posso aceitar que seja errado fazer o que se deseja. até que ponto ser tu mesmo pode ser prejudicial a outro?

lhes digo a verdade, mas não me querem creer.

e que faço se não acreditam na minha verdade?

não posso fazer nada se entendem meus sinais de maneira equivocada; assim sou, e não quer dizer que meu discurso perca o significado.

o amor perdeu o sentido de exclusividade pra mim; quando passei a amar meus amigos, a ver pessoas com as quais não tenho um relacionamento romântico como uma possibilidade de alguém pra amar, sem essa exigência, tudo mudou.

e, com isso, também posso sentir amor por alguém que me envolvo, sem a pressão de uma relação.

mas isso é difícil de entender aos outros... 

existem só duas opções de respostas pro meu jeito de agir: uma é pensar que to apaixonada e por isso tentam induzir a uma relação, e o outro é pensar que to apaixonada e por isso fugir de mim.

de fato to apaixonada; nesse momento do amor, tudo que tenho é sentimento e ofereço tudo que tenho

se não é pra ser completo,

se não é pra ser intenso,

prefiro que não passe nada.

e de fato amo com todo meu corpo, com todos os beijos e carinhos, com toda a profundidade das conversas e com tudo que posso oferecer de bom;

podem pensar que então não significa nada, mas penso justo o contrário

é justo por ser tão intenso e lindo,

justo por ser tão verdadeiro, sem julgamentos e sem intenções,

justo por isso é valioso e gera conexões importantes.

pensar em um amor livre não é sobre estar com muitas pessoas, nem sobre ser infiel, nem sobre não se importar com sentimentos e relações

pensar em um amor livre é justamente sobre saber amar sem centralizar o sentimento

e saber direcionar as emoções pro momento, aproveitando todas as possibilidades da conexão

sem excluir a possibilidade de que é possível se apaixonar de diversas maneiras

com cada amor diferente trazendo uma forma de relação

sempre única, sempre especial


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Ayuno.

Essa semana saí com um amigo que me perguntou se já fiz jejum, e começamos a falar sobre isso. Ele tá fazendo jejum com alguma regularidade, intermitente todos os dias e às vezes passar o dia todo sem comida, já chegou em um máximo de 60 horas. Me causou bastante curiosidade, por ser algo que nunca tinha ouvido falar assim por alguém próximo.

Ele me disse que se sente melhor, e passa a pensar coisas que antes não pensava. Passa a questionar os desejos, a pensar se quer mesmo algo ou se é só um costume ou um vício. Também passa a perceber melhor as coisas que fazem bem e as que fazem mal, e isso tudo não só em relação à comida.

Achei muito interessante toda essa mudança, lembrando também que o primeiro livro em espanhol que li foi Siddharta de Herman Hesse. Lembrando também que parei de comer carne pelo mesmo motivo que ele decidiu fazer seu primeiro jejum, ou seja, pra testar algo que leu em algum lugar e ver como afeta seu próprio corpo.

Falei pra ele do quanto teve uma época da minha vida em que eu estudava budismo, taoismo e comia só o necessário. Nessa época parei de comer doces, porque percebi que eu tinha um vício incontrolável de comer obrigatoriamente um chocolate depois de cada refeição, e que quando parei, percebi que era só um costume e não um desejo real, um vício do corpo que me condicionava.

Falei pra ele também do quanto eu, atualmente, tenho compulsão alimentar por causa de ansiedade e tristeza. Quando sinto isso, preciso comer algo ou muito doce ou muito salgado sem parar, e não é porque me faz bem, é só porque preciso fazer esse movimento de trazer algo à boca e mastigar, um movimento físico pra tentar esquecer o que tá me fazendo mal. E depois não me sinto bem, só sinto o corpo inchado e cheio, muito mais do que seria o suficiente.

Falei que, quando to ansiosa, bebo muita água. Quando to numa conversa desagradável, quando tenho que pensar coisas difíceis, tomo água compulsivamente, em um intervalo de poucos minutos preciso de muitos goles mesmo se não to com sede. E acabo com isso ficando com ainda mais sede, e ainda mais ansiosa.

Hoje passei toda a manhã sem comer e percebi algumas etapas. Primeiro vem a fome, e se tem que ignorar ela. Com isso vem uma certa fraqueza, uma certa preguiça, que também se tem que superar. Depois parei de sentir fome e senti meu corpo mais leve, justamente por não ter ingerido nada. Então me veio uma energia que me fez terminar os estudos que eu tinha pra fazer e realizar exercícios físicos, algo que nunca faço quando to com fome ou quando penso que em breve posso passar a estar com fome justamente porque imagino que vou ficar mal e sentir fraqueza. Não senti nada disso, só uma satisfação. E então fui almoçar, o que me foi meio difícil. Tinha fome, mas não vontade de comer. Não seria difícil passar mais algumas horas sem uma refeição.

Então lembrei de quando passei mal por intoxicação alimentar. Foi o momento que mais fiquei mal na minha vida, graças às bactérias estrangeiras. Passei uma semana inteira com diarreia, sem conseguir comer nada, e, sempre que tentava, era um esforço muito grande que não funcionava. Depois de alguns dias sem comer absolutamente nada, depois disso alguns dias comendo uma ou duas maçãs por dia, eu já tava bem o suficiente pra comer mas não queria. Não parecia que entrava comida, eu mal sentia fome. Não sentia nada, e podia seguir meus dias assim. Mas, nessa altura, eu não podia seguir sem comer porque tava extremamente fraca por causa da intoxicação.

Pensei como me acostumei nesses dias com a falta de comida, mesmo que não fosse por vontade própria e mesmo que, nesse contexto, me estivesse fazendo mal. Mas sinto que por vontade própria pode funcionar desse jeito também, assim como temos o costume de comer demais, podemos criar o costume de comer o suficiente, de comer pouco ou de não comer. 

A ansiedade que sinto já é crônica, vivo com isso há pelo menos 15 anos e melhora um pouco e depois piora, são sempre ciclos em que nunca passa, eu nunca não to sentindo isso. Sinto que posso ter encontrado uma ferramenta pra lidar com meu maior problema, e isso me deixa muito feliz. Sinto que isso pode ser uma maneira de encontrar espaços escondidos de mim, se limpar o corpo, sentir mais leveza e ter mais fluidez no pensar e sentir. Acredito no que esse amigo me disse, em relação a questionar suas ações e pensamentos e se aproximar mais de quem se é. Já sinto que morando em outro país me aproximo mais de quem eu sou e descubro muitas coisas novas e inesperadas de mim mesmo. Agora, além de todas as outras, tenho mais uma ferramenta pra testar. 

sábado, 2 de dezembro de 2023

Coisas que não gosto na Bolívia.

Os bolivianos sempre me perguntam se gosto de morar aqui e se tem algo que não gosto; sempre digo que gosto de tudo, mas, pensando um pouquinho melhor, não é completamente verdade. Algumas dessas coisas notei já à primeira vista, outras demoraram um pouco mais pra serem elaboradas e compreendidas, mas de qualquer forma continuo gostando muito daqui. Aqui vão algumas coisas que não gosto na Bolívia:

  • Lixo
Vejo muito aqui que não se preocupam muito com o lixo. A primeira impressão é que nada se separa, colocam secos com orgânicos, recicláveis com não recicláveis, mesmo onde tem lixeiras pra separar. Mas o principal é do lixo jogado pelos lugares, tem ruas bem sujas, tem lugares que tudo fica no chão pra ser recolhido, em viagens nas beiras de estradas se vê muito espalhado no meio da vegetação. 
Mesmo nas minhas viagens a campo com a graduação pra lugares mais afastados, que a princípio são mais naturais. encontro lixo jogado no meio dos bosques e pastos. Também como se usa muuito plástico, me parece que a produção de resíduos é maior e não me parece que o planejamento pra lidar com isso é bom o suficiente, ao menos nos lugares que visitei pelo departamento de Cochabamba.
  • Trânsito
Essa foi minha primeira impressão de Cochabamba: o quão caótico é o trânsito. Em um minuto na rua já é possível notar como os carros se ultrapassam, buzinam todo o tempo, vão super rápido, não fazem sinal quando vão dobrar, não esperam os pedestres cruzarem a rua e buzinam pra que tu vá mais rápido, param em qualquer lugar, enfim, muitas coisas. Conversando com bolivianos descobri que não é obrigatório fazer aulas de autoescola. Pelo jeito agora tem aulas teóricas obrigatórias mas até algum tempo atrás não existia, e as classes de direção são optativas, se a pessoa já sabe dirigir pode simplesmente fazer a prova. Me disseram também da corrupção, tem gente que não passa no exame, paga e é aprovado. Isso me explicou muita coisa.
Se pode comprovar isso pelo visual dos carros que circulam nas ruas. Com muita frequência são batidos, amassados, com faróis queimados, vidros rachados. Já peguei taxis que não abriam uma das portas, que tinham o banco traseiro torto por estar quebrado, sem cinto de segurança (na verdade muitos não tem, quase ninguém usa), entre outras coisas. Virou até uma piada minha esses taxis, porque no vidro dianteiro sempre tem um adesivo escrito "taxi seguro" mas olhando pro estado do carro é impossível imaginar que seja realmente seguro.
O transporte público também é bem caótico. Não existem ônibus, são vans ou micro ônibus chamados trufis e também os taxi-trufi, que são carros com mais bancos em lugar de porta malas que funcionam como transporte público. Tem muitas linhas e se pode tomar em qualquer lugar fazendo um sinal, assim como também pode parar em qualquer lugar pedindo pro motorista. Isso é bem caótico porque a qualquer momento pode parar um trufi e gerar uma série de buzinaços e pessoas caminhando no meio da rua pra entrar e sair da van, porque a maioria não costuma estacionar mas simplesmente parar ali mesmo onde está. O pagamento na maioria deles se faz ao descer, já na rua e dando o dinheiro pro motorista pela janela. 
Outra coisa é que a cada dia vejo uma nova coisa que seria infração de trânsito no Brasil. Primeiro o que já comentei dos faróis queimados, carros danificados, falta de sinalização e não usar cinto de segurança. Também tem excesso de gente em um automóvel, como 2 pessoas no banco da frente, 4 pessoas no banco de trás, gente andando no porta malas, gente em caçambas, mais de duas pessoas em motos (já vi 3 adultos, 2 adultos e 3 crianças, 2 adultos e 2 cachorros...) e coisas assim. Faróis coloridos e piscantes, animais soltos nos carros, placas apagadas ou falta de placas, desobediência das sinalizações e não andar na sua faixa são mais algumas.
No começo eu tinha bastante medo de me passar algo a qualquer momento; agora já aprendi algumas coisas, como nunca confiar na falta ou presença de sinais de luz nas esquinas, olhar pra todos os lados, não atravessar uma rua faltando pouco tempo do semáforo e, principalmente, aprendi a correr, porque a maioria dos carros simplesmente não para e ainda por cima te buzina. Aprendi a, também, nunca falar nada do trânsito brasileiro.
  • Clima seco
Pra mim que vivo no sul do Brasil essa foi difícil de acostumar. Vim morar justamente na região dos vales secos interandinos, na região de puna mesofítica, onde é seco de 4 a 6 meses por ano e mesmo quando chove, continua sendo seco. No primeiro mês, meu nariz doía ao respirar e sangrava todos os dias. Minha pele, que já é seca, secou tanto que meus dedos racharam e começaram a sangrar, e meu rosto ardia e descascava até eu comprar um creme pra pele super seca e começar a usar todos os dias. Uns exemplos de quão seco é aqui são a velocidade que secam as roupas quando se penduram no varal e o fato de que eu nunca vi um alimento mofar. Nos dias que escolho mal quando lavar roupa e chove enquanto estão estendidas, no dia seguinte de manhã já estão secas como se não tivesse chovido. Sobre os alimentos, um amigo tinha um dente de alho há uns seis meses em casa e ele simplesmente secou, enquanto onde eu vivo em um mês ele estaria cheio de fungos. Agora meu nariz já se acostumou e já aprendi a usar creme pra não ficar com a pele rachando e doendo, mas no começo foi difícil e ainda sinto falta de um pouco de umidade no ar.  
  • Machismo
Essa é mais sutil e demorei pra perceber. Um dia um amigo que conhece o Brasil e já viajou pra outros países me perguntou que tal o machismo aqui e eu na hora não soube responder, mas depois disso comecei a pensar e percebi como é bem maior do que eu to acostumada a viver. Percebi que no geral as pessoas tem pensamentos bem mais conservadores e não entendem coisas que pra mim e pras pessoas que eu costumo conviver são muito óbvias. Alguns exemplos: uma vez uma vendedora perguntou onde estava meu esposo, falei que não tenho, ela perguntou por que e disse que se eu não tenho alguém no Brasil me esperando podia casar com um boliviano e ter filhos, que ela podia fazer meu casamento e a outra senhorinha poderia cozinhar; na hora foi engraçado e até bem gentil ela se oferecer pra me casar, mas nisso se nota como tem bem forte o pensamento de que uma mulher tem que se juntar com um homem e construir uma família, e que eu com minha idade já devia ter feito isso. Mesmo entre jovens percebi a predominância do pensamento da família, do casal monogâmico hétero, da fidelidade, do papel do homem e da mulher.
Teria vários exemplos, mas vou exponer mais dois. Um dia peguei uma carona com o irmão de um cara que eu tava saindo, estávamos nós três no carro e ele perguntou de onde sou sem se dirigir a mim. Meu companheiro respondeu que do Brasil, o irmão dele disse que eu não tinha mesmo acento boliviano na fala, e então seguiram conversando. Esse comportamento me soa muito com a ideia da mulher como posse do homem e que, por respeito masculino, um homem não pode se dirigir à mulher do próximo, agindo com ela como "a namorada do amigo". Me senti bem desconfortável porque ele em nenhum momento se dirigiu a mim pra saber coisas da minha vida, e depois quando falei pro meu companheiro que isso era uma marca sutil de machismo ele me disse que é porque o irmão é tímido e se constrangeu de falar comigo. Claramente é mais profundo que isso.
O outro não é exatamente um exemplo, mas percebi que aqui, nas situações que vivi e presenciei, os homens não sabem respeitar um não. Isso é bem sério. Pensam que com um pouco de insistência pode virar um sim e não entendem a seriedade das situações. Um dia tive que apelar pra legislação brasileira falando pra um cara "sabia que se a gente tivesse no Brasil eu poderia te denunciar por abuso?" pra ele parar de insistir em ficar comigo. A princípio ele riu e não levou a sério, falou que se tu é um casal com uma pessoa insistir pra passar algo não é abuso, e eu disse que sim é, que se alguém quer algo e o outro não é o não que tem que ser respeitado, sem questionamentos e sem insistência, e que desrespeitar isso de qualquer maneira é sim considerado abuso. Falando e vendo outras situações isso parece ser um pensamento geral, mesmo entre mulheres que acabam levando na brincadeira ações desse tipo. 
Claro que tudo isso também existe no Brasil, que segue sendo uma cultura bem machista, mas mesmo assim sinto que aqui é mais intenso, mesmo entre jovens do mesmo círculo social que eu.
  • O medo que nos induzem
Boto fé que Cochabamba pode ser perigoso, assim como tantas cidades, mas não gosto do tanto de medo que os bolivianos dizem que temos que ter. Dizem que tem alguns lugares que não devo ir, que tenho sempre que levar a mochila na frente, que não é pra pegar o celular na rua, que é só pra andar onde tem movimento, que não é pra ficar nas praças. Claro que é de se considerar, afinal os nativos conhecem melhor que ninguém os perigos da sua cidade, mas me incomoda como por exemplo um dia fui na cancha (o mercado público), quando cheguei em casa a abuelita que mora comigo perguntou onde fui, respondi e ela de imediato se colocou assustada e perguntou "e não te assaltaram?? Não vai lá, é muito perigoso". Bom, eu já fui lá, não duvido que seja perigoso, mas não vou deixar de ir em um lugar onde tenho que ir, e é muito ruim que induzam tanto medo de coisas que tem que ser normais como frequentar a cidade. De fato não vou ficar rateando, mas sou brasileira, também vivo em um lugar perigoso e sei me cuidar. É bom receber esse tipo de conselho sobre a cidade pra melhor saber por onde tem que tomar mais cuidado e receber umas dicas de como se portar pra estar em segurança, e entendo a preocupação e cuidado que querem ter comigo por ser estrangeira, mas é extremamente ruim e limitante ser condicionado a ter medo de um lugar a ponto de se impedir de fazer coisas pensando no que talvez poderia acontecer. 

Isso é o principal, não consigo pensar em outras coisas e também não são fatores que me tirem o quanto me encantam as terras bolivianas; apesar de serem coisas que não gosto, não diminuem o sentimento de tudo o que é bom que tem por aqui. A Bolívia é um país lindo, cheio de cultura e gente querida, onde tem muito pra ser vivido e aproveitado. Tem seus problemas como em qualquer outro lugar do mundo, o que faz parte da sua complexidade cultural e todo o histórico de desenvolvimento, fazendo com que aqui seja um lugar único com muito a ser descoberto. 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Rumos.

Nunca soube que sempre quis chegar exatamente onde estou, e aqui estou. Quando era criança, íamos em família para a praia fazendo um caminho mais longo pra passar por um lugar bonito que é o planalto meridional, chamado serra, onde tem a mata de araucária e os campos de cima da serra. Passando por ali, tudo que eu queria era parar na beira da estrada, pular uma cerca, sentar no meio do campo nativo e ficar ali todo o dia. Ficava muito frustrada quando meu pai dizia que não podíamos parar, ou, se parávamos, era só o tempo de fumar um cigarro e seguir viagem. 

E agora, sem pensar exatamente em onde meus rumos iam me levar, me deparo com onde cheguei: quase bióloga, que trabalha em campo, conhece quase todo o Rio Grande do Sul e tantos de seus lugares inacreditáveis, em contato com comunidades guarani, restauradora e que posso, no meu trabalho e fora dele, fazer o que era meu sonho na infância: contemplar. 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Só conhecendo outra cultura pra valorizar a própria.

    Tem uma coisa muito valiosa pra mim que to aprendendo enquanto vivo aqui na Bolívia, e isso é valorizar a minha própria cultura brasileira. 

    Quando decidi viajar pro lugar mais distante e diferente que poderia, o que queria era justamente conhecer algo diverso do que vivi toda minha vida. Foi um pouco irônico eu entrar nesse processo justamente no momento que tava me dedicando pra conhecer a cultura gaúcha, que por toda minha vida tinha desprezado de alguma forma. Como nunca tive vivências culturais em família e era uma criança bem julgadora, achava que tudo parecia meio besteira e indigno de atenção. Assim cresci como alguém afastado da cultura local, pela minha índole e pelo distanciamento que minha própria família tem disso. 

    Outra ironia foi que comecei a me interessar por entender as coisas do sul quando me envolvi com um grupo de resgate cultural afrouruguaio. Começando a tocar candombe, entrei em contato com pessoas bem ligadas à cultura gaúcha que escutam música, tomam mate, vão a CTG, conhecem a história. Antes disso, na graduação, pela questão da paisagem e da vegetação, pude entender um pouco do sentimento do gaúcho com a pampa e isso me deu interesse em me aproximar disso tudo. 

    E nesse contexto me mudei pra Bolívia, no momento não conhecendo quase nada do que é meu do sul. Quis fazer essa viagem pra entender um pouco da minha identidade latinoamericana como brasileira, porque infelizmente isso com frequência parece muito distanciado. Aqui, me identifico com muitas coisas e outras me são muito diversas. Mas o mais lindo é o quanto essa vivência tá me fazendo conectar, ou pelo menos criar um maior interesse, em conhecer as tradições de onde vim.

    Os bolivianos, de maneira geral, amam muito a Bolívia e são muito orgulhosos do seu país e cultura. Logo que cheguei, nos meus primeiros dias fui a uma grande festa religiosa e conheci muitas das danças tradicionais. No momento foi algo mais só dessas pessoas que estavam dançando, que já me encantou muito, mas depois descobri que não só as pessoas que estavam se apresentando dançam, mas em geral todos sabem todas as danças e gostam disso. Se ensina a bailar nas escolas, e, de todas as pessoas que conheci, mesmo as que hoje adultas não gostam de dançar veem o fato de já terem dançado como algo bonito. Nas festas que fui (nas boas, por supuesto), sempre chega uma hora da noite, normalmente mais pro fim, em que começa a tocar as músicas tradicionais de vários estilos. É a parte mais divertida da festa, quando todos parecem dançar com muito mais energia do que estavam nos reggaeton e cumbia. 

Em uma dessas entradas folclóricas vi um grupo dançando chacarera, algo que achei inacreditável porque não sabia que isso chegava até a Bolívia. Com isso me senti incomodada por ser do Rio Grande do Sul e simplesmente não saber, até estar aqui e ver pela primeira vez, como se dança uma chacarera. Me perguntaram quais são as danças típicas de onde vim, e eu simplesmente não sei porque nunca tive nenhum contato. 

    Sempre que me perguntam de onde sou, perguntam também o que to achando da Bolívia e se já conheci as tradições. Querem saber se já fui a pueblitos, se já bebi chicha e guarapo, se já comi os pratos típicos, o que eu mais to gostando de estar aqui. Parecem muito dispostos a me apresentar tudo. E querem saber coisas da minha cultura também, e nesses momentos me sinto meio envergonhada de não saber diversas coisas. 

    Em relação às comidas, me perguntam também o que é típico do Brasil e fico com dificuldade de responder. O Brasil é imenso e não posso falar de outros lugares que não sejam o sul, mas também não sabia o que responder sobre isso. O clássico é o arroz com feijão, depois me lembrei da a la minuta, e mais gaudério tem o churrasco e o carreteiro. Percebi como sempre vi isso tudo como completamente normal e corriqueiro, mas que na verdade são tradições importantes brasileiras. Nunca pensei na a la minuta como um prato típico até que comecei a viajar e ver outras coisas, como por exemplo o silpancho e o piquemacho. 

    Um momento lindo que me fez sentir muita vontade de conhecer melhor as tradições foi no día de todos santos, quando montam altares aos mortos que vão vir visitar os vivos por um dia. É um costume lindo. Me perguntaram também o que fazem no Brasil, ao que respondi que só vão ao cemitério limpar os túmulos e trocar as flores pra mais um ano. É uma tradição simples, que em geral minha família leva com um certo tédio e algo de obrigação, e por isso também sempre desprezei isso, assim como sempre desprezei as coisas católicas. Mas ver essas práticas andinas me fez ver as coisas de outra forma, ver como é bonito qualquer tipo de tradição, por mais simples e aparentemente sem significado que seja. 

Tradições não precisam ser elaboradas e complexas, na verdade na maioria das vezes são as coisas mais simples, e isso foi um grande aprendizado. 

    Nunca tinha rezado na minha vida, nem quando estudava em um colégio católico, porque eu não gostava. Nesse dia, não só rezei como rezei em espanhol na casa de muitos desconhecidos pra que a alma dos seus mortos fosse bem. Na infância não fazia o sinal da cruz e me negava a rezar, diziam que eu era desrespeitosa e eu não concordava porque simplesmente tava agindo de acordo com as minhas crenças. Agora igual não tenho essas mesmas crenças, mas não participei dos ritos com uma intenção de brincadeira ou por algum tipo de interesse, mas sim porque valorizo essas ações da cultura e me sinto feliz em poder compartilhar.

    Já não vejo as coisas como verdades ou mentiras, mas sim como partes igualmente válidas de práticas culturais igualmente lindas e significativas. Era uma energia muito forte nesse dia, e me deu vontade de fazer parte dessa tradição nesse momento mesmo que não seja da minha crença. Enquanto participava, foi uma realidade e senti isso de forma verdadeira. E com isso aumentou minha vontade de conhecer da cultura que sempre desprezei na minha terra, e também de todas as coisas lindas e intensas que existem, principalmente, pela América. 

    Não pensava que conhecer tradições tão diferentes e distantes poderia me fazer sentir mais conectada com as raízes de onde vim e com vontade de vivenciar essas raízes. Esse é um aprendizado muito bonito e importante que vou levar dessa grande experiência de viver nos Andes. Mas, por outro lado, não acho que seja verdadeiro dizer que é assim tão diferente e distante... A América Latina tem, sim, uma unidade cultural, por mais diversa que seja, e seja qual for essa unidade, afinal não descobri ainda o que é, me faz sentir parte desse continente do sudoeste do mundo.

domingo, 29 de outubro de 2023

Mi corazón confundido
no te puede alcanzar
ni tampoco alcanzarse a sí mismo.
En este laberinto de emociones
se siente solo
se siente lleno
se siente tanto
que a nada puede comprender
mientras el tuyo,
pareciéndose tan seguro,
sabe lo que quiere
y el camino que debe seguir.
El mío, perdido,
sin fuertes convicciones,
sigue adelante y pronto regresa
o largo regresa y pasa a correr.
Él no sabe cuánto se cansa
en seguir tantos caminos vanos
pero es débil en sentir
así como es débil en pensar
y así, mi corazón confundido
siempre suele sufrir.

Cariño.

Quero escrever todas as lembranças que tenho de ti antes de que te olvide, cariño.

Teu rosto fofo e macio com os olhinhos fechados e tua boca delgadita sutilmente sonriendo são uma coisa linda de se ver. Não sei explicar teus traços, a textura da tua pele, pero me ha encantado mais do que poderia imaginar.

Achei que não estaria me apaixonando até que chegou o momento de chorar com o rompimento. 

Me resta teu ombro macio me servindo de almohada na tua cama dura e curta, em que tu não deixaria os fantasmas pegarem nos meus pés enquanto dormíamos.

Queria poder falar mais do teu rosto além da imagem que tenho, que é uma imagem mais sensitiva do que visual. Quisiera yo tener también un imagen real, sacada con una cámara. Assim parece que tenho os olhos fechados enquanto te vejo y te extraño, sin poderte sentir. 

Toquei nos teus pés pela primeira vez talvez uma hora antes de nos despedirmos. Tinha pensado que na próxima vez que nos víssemos, te podría hacer un masaje. Mas me despajaste como sempre faz, com essa palavra que sempre me pareceu tão feia pra algo tão amoroso quanto me abraçar e beijar na frente do meu prédio, e hoje foi diferente. Porque foi feio, e mais sério.

Cuando me ofreciste la sandía pensei que era de fato a fruta, e rimos bastante. Rimos também de tantas coisas no teu sofá, e me senti tranquila como não me sentia há tempos. 

Como conciliar entre sentirme libre, pero sola y ansiosa, con sentirme enganchada y presa, pero tranquila y feliz? 

Así me hiciste sentir, mi amor. A coisa mais linda é poder acariciar un pelo mojado mientras nos abraçamos conversando sobre algo. Okei me dijiste tantas vezes de uma maneira tão linda.

E sempre me vem teus ojitos cerrados y tua boca fininha, que me deu beijos tão gostosos. Tuas mejillas grandes y blanditas, tão irresistíveis de tocar. Assim como tua nuca, tuas mãos, teus ombros, teus joelhos. Sem esquecer los tantos gatitos nos momentos exatos.

A primeira vez que falamos sobre o que quero e sinto, me dijiste que tienes duro el corazón. No te lo pude creer, por que me pareces a mi tan blandito. Comprendo pero no estoy de acuerdo; entiendo, te respondi, e isso é bem difícil.

Como três semanas podem ser assim tan fuertes? Tuvimos sueños intensos con nosotros, nos atingimos em algum lugar profundo tão rápido.

No creo que te vaya olvidar. Que no me olvides tampoco. 

sábado, 21 de outubro de 2023

Fragmentos.

Sinto os fragmentos que me torno assim:
Um pedaço pra cada lado
tentando encontrar algum centro
que cada vez só se diminui
no que pensa que é
e encontra o que é realmente.
com cada fragmento se busca segurança
mas com todos separados
não se encontra nada.
o centro é seguro quando está completo,
quando junta os pedaços
e não deixa que corram a todos os lados
em busca de um conforto passageiro.
há demasiadas coisas contraditórias
que não se deixam conciliar...
com tantas palavras dispersas
por linhas a todos os lados
uma rede se construindo
com um fio por demais sensível
se quebra antes de iniciar sua construção
deixando tudo como poeira
que não se pode limpar.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

tem uma coisa vermelha, preta
que se esconde em algum fundo
em algum tapete
em algum baú
embaixo de alguma terra
de um lençol, de um colchão.
tem uma coisa branca, amarela
dentro dessa outra coisa
mais escondida, mais dentro
dentro do dentro do mais fundo
escuro e longínquo
espaço onde tem algo perdido.
uma escada estreita e escura
de ferro, enferrujada
leva a algum lugar
mas não encontro escada
e não encontro energia
apenas uma vontade
que não sai de um pensamento.
são coisas de carne
são coisas vivas e físicas
que não se conseguem mover
são coisas intensas e fortes
que não se podem remover
que não se conseguem abrir
que não podem emergir
porque é fundo e escondido
e por mais que tente
(em verdade não tento)
por mais que fale
(em verdade não busco)
nem o tapete
nem o baú
nem a terra
nem o lençol, nem o colchão
nem a poeira, nem a escada
e muito menos a luz, que sei que há dentro
estarão mais perto.
está tão longe
que os pés não ingressam na busca

sábado, 30 de setembro de 2023

Distração.

Tem dias que não consigo entender o que os outros falam. Faz pouco tempo que percebi isso, mas acho que sempre me aconteceu. Talvez se intensifique um pouco por causa do idioma, e to aprendendo a aceitar esse tipo de coisa. Teve um tempo que eu ficava incomodada por não entender algo, não gostava de perguntar a mesma coisa várias vezes, pensava que tava incomodando. Era um problema que eu queria reverter. Sinto que agora to cada vez me entendendo mais, percebendo meus padrões de comportamento e os motivos de algumas coisas acontecerem às vezes. Sinto que paro de entender o que os outros dizem quando me sinto ansiosa, quando passa algo complicado, quando to num momento introspectivo seja lá qual seja o motivo. To entendendo que isso é normal, que mudamos não só em grandes períodos de tempo as grandes mudanças, mas também pequenas mudanças que ocorrem durante os dias. Os sentimentos são sutis, e tem que ter atenção pra notar. Também se tem que estar aberto pra sentir e aceitar essas diferenças, que são passageiras e todas parte do que sou. 

Prefiro sempre ter atenção nas pessoas e entender o que tentam me comunicar, mas tem vezes que não dá. Tem vezes que tá tão difícil as próprias coisas, que já tem pouca atenção pra mim mesmo, confusões e o que mais possa estar acontecendo, ou mesmo sem motivo algum aparentemente, que é necessário aceitar e desligar um pouco o externo. Acho que de qualquer forma é um pouco incômodo pros outros, mas o mais importante é que é incômodo pra mim ter que gastar uma energia que não tenho pra algo que não é meu. O corpo grita pra ser ouvido, no seu silêncio de sensações. Agora consigo ver esse tipo de coisa como um sinal, como algo que tenho que observar em mim mesmo e tentar descobrir o motivo do cansaço, da desatenção, da incapacidade. Mas, mais que descobrir o motivo, o importante é respeitar esses sinais e não exercer esse tipo de violência sutil sobre si mesmo de ignorar o que acontece pra não ser julgado de algo pelos outros. No fim, ninguém sabe o que se passa dentro de cada um, e por isso o respeito mais importante é o por si mesmo. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Cochabamba.

Ruidosa rua
Pela janela aberta.
A pomba
Está morrendo na praça.
Estão trocando as flores
Que estão secando na praça.
O chafariz de água
Também precisa ser limpo.
As flores caídas no chão
Recolhidas pela cholita.
Os refrescos,
As bactérias
Que os intestinos não conhecem.
Buzinas e adelantes
Pijchando coca.
Pelos pela comida,
Carrinhos de mão,
Amendoim e palta.
Alasitas,
Qual meu pedido?
Que miniatura comprar
Pra pedir o que não sei?
Que a Virgem de Urkupiña
Me ensine a bailar.
Os diabos das minas
Com seus brilhos e fogos,
Suas roupas e máscaras
Estão querendo fugir.
Zampoñas e trompetes,
Tambores e militares.
Do terraço
Vejo montanhas que tiram o ar.
Bosque boliviano-tucumano,
Bicicletas quebradas,
Grandes distâncias.
O lago está seco,
Os narizes sangram.
Cada um aqui vive um tempo diferente.
Quanto mais perto do sol
E em mais baixas altitudes
Mais queima.
A poesia dá sono,
A coca machucada.
Pia entupida,
Água transbordando.
E a pomba, já morreu?
Os pães no lixo,
O vento forte,
A cultura calorosa.
Caminho pelas ruas
Que a chuva não molha
Mas sempre há passos
E diferentes pneus.
O Cristo nos observa,
Brilha em cima do morro.
Cinquenta centavos de boliviano,
Tantas palavras desconhecidas
E tanto mais a conhecer.
Seco, tudo é seco,
Mas se molha todos os dias.
O dente de leão
Facilmente volta a florescer.
Cochabamba está em fruto
E não são exóticas invasoras.
Tudo que meus olhos veem
E o que os ouvidos ouvem,
Em quechua e español,
Tão distante da metrópole,
Tão nativo dessa terra.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Santa Cruz de la Sierra.

Minhas primeiras impressões na Bolívia começaram no avião, chegando de São Paulo a Santa Cruz de la Sierra. Eu, que não tinha pesquisado muito antes de partir, imaginava que ia chegar e ver montanhas, Bolívia já era sinônimo dos Andes, mesmo sabendo do grande espaço do território que não é montanhoso. Olhava pelas janelas procurando elevações e não via nada, e me estranhava que cada vez via menos; via algumas plantações, llanuras sin fin, e aos poucos foram cada vez mais sumindo no meio de uma poeira amarronzada. Enquanto pousava, me estranhava ver tantas palmeiras. Como pode ter tanta palmeira em um país completamente continental? Foi meu contato com a tropicalidade da Bolívia, não tem praia, mas tem palmeiras. Muy raro. Não entendia nada. 

Já via o vento das janelas do avião enquanto pousava. Via mesmo, porque parecia muito poeirento, e parecia também muito forte porque as folhas das palmeiras eram claramente voltadas pra um lado e se balançavam. Saí do aeroporto e comprovei: muito vento, muita poeira. Sentia os grãos entrando no meu nariz, sentia muito calor porque meus casacos não cabiam na mala e eu precisava usar todos, era golpeada pelo vento como as copas das palmeiras já tão inclinadas pelos anos de ventania. Não esperava tanto calor, nem tanto vento. Nem as palmeiras, fiquei perplexa em ver tantas, e não qualquer palmeira, mas coco. Coco mesmo, ficava olhando e questionando se era isso realmente porque na minha cabeça de botânico em formação não fazia sentido ter esses cocos ali. Pensava neles como muito característicos do litoral brasileiro, mas, pensando agora, óbvio que não. 

E fui numa llanura em meio ao sol do meio dia, tão mais claro e forte do que o que eu estava acostumada, pegar uma van pro centro da cidade. Me sinto tão segura sozinha sem saber exatamente pra onde tô indo. Tava morrendo de fome e não sabia o nome de nenhuma comida, recém chegada em terras hispanohablantes. Esperava uma cidade maior, com prédios, construções e vi algo muito mais sencillo, me espantei com a quantidade de gente vendendo coisas na rua, mas me senti muito bem apesar do peso das mochilas, da fome, do calor. Apontei pra um bolo, não queria perguntar nada além de onde pegar o ônibus pra onde eu tava indo. Não sabiam me responder, mas consegui encontrar sozinha. Gosto de ir yendo, sem perguntar, sem confirmar, mas com a segurança do mapa em mãos. Nada pode dar tão errado.

No outro dia, me levaram de moto pra conhecer o Jardim Botânico. Nos perdemos um pouco e caminhamos um montão. Adorei ver as plantas frutíferas parecidas com as que eu já conheço, reconhecer gêneros e famílias, ver elas ali ocorrendo tão iguais e tão diferentes em um local tão longe. Andamos em umas partes que estava escrito pra não ir porque podíamos nos perder, mas meu acompanhante disse que já tinha ido e não parecia nada propício a não se encontrar outra vez. Devemos ter andado por umas duas horas, sem água e no calor queimando minha pele. Mas foi lindo ver o quanto a vegetação muda em trechos tão curtos, claramente notável a diferença dos bosques mais secos, queimados de sol, baixos, retorcidos, pros mais úmidos, com árvores grandes, mais verdes, altas. Me encanta perceber que aqui tem tal planta e logo ali não tem mais, e perceber as sutilezas não tão sutis das diferenças de solo, água, incidência solar na estrutura dos bosques. A semelhança é que todas estavam igualmente marrons de poeira. 

No outro dia, a viagem foi linda. De ônibus de Santa Cruz hacia Cochabamba. Foi uma tortura os cinco filmes seguidos sobre animais que fui obrigada a assistir em volume mais alto que o necessário, me atacando a ansiedade, mas a vista da janela foi maravilhosa. Pude ver a mudança de vegetação com a altitude, começando pelo chaco seco de Santa Cruz com palmeiras e gramas, passando por um bosque baixo, depois uma neblina e a vegetação de yungas (creio) verde e grande como uma floresta pluvial, inclusive com plantas conhecidas como as mais marcantes jussaras e embaúbas. Depois tudo começou a secar, depois de subir um pouco as montanhas, e eu via paredões com gramas secas, bromélias e cactos até escurecer e não mais poder ver nada quando já estava entrando nas urbanizações. 

Assim cheguei a Cochabamba, depois de 12 horas encantadoras de observação de paisagens maravilhosas pelos gradientes vegetacionais desconhecidos da Bolívia. Pensava não querer voltar a Santa Cruz, mas na verdade resolvi escrever isso justamente por estar pesquisando outras coisas pra fazer por lá. Espero voltar em breve pra conhecer las lomas de arena e também Samaipata, e também outros lugares desse país tão cheio de coisas pra descobrir. 


quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Metrópoles.

Em outras viagens, pensei sobre como as metrópoles são homogeneizantes. Conhecendo Porto Alegre, fui pra Buenos Aires e achei uma Porto Alegre maior. Indo a São Paulo, me pareceu a mesma coisa só que maior ainda em alguns aspectos. Me sinto em casa em lugares assim porque me é tudo familiar, mesmo com particularidades. Porto Alegre tem o diferencial de ter um lago, os prédios modernos e antigos não são tão grandes, a urbanização foi bem irregular e construções clássicas e modernas, pequenas e grandes, coloridas e grises, altas e baixas, convivem num mesmo espaço. Em Buenos Aires é tudo extremamente grandioso e mais ou menos contemporâneo em unidade, sendo todas as construções igualmente magnânimas e antigas; as ruas principais são muito largas e compridas, enquanto as outras são muito pequenas e estreitas. Já São Paulo é grandiosa de outra forma, a maioria dos prédios é excessivamente alta e relativamente estreitos, a maioria modernos, entre os quais corre um trânsito caótico como o de outras metrópoles. Semelhança entre São Paulo e Buenos Aires é que nas duas não pega sol nas ruas devido ao tamanho das construções, o que me incomoda muito.

Apesar das diferenças, são relativamente iguais em suas lojas, restaurantes, supermercados, praças, carros, pedestres, murais pintados, pixos, outdoors, coisas pra fazer. Parece que as metrópoles falam a mesma língua, parece que as metrópoles são como as farmácias São João, com um roteiro exato de como se estabelecerem. Inclusive, há muitas redes de comércios estabelecidas, que tende a homogeneizar tudo. Não gosto disso, mas me é familiar. Estando na Bolívia, percebi que acabo sim gostando dessa homogeneização, justamente por me fazer sentir em um lugar seguro.

Aqui é tudo diferente e fora dos padrões do que me é conhecido. O comércio informal domina tudo, e nos lugares mais estabelecidos não existe o padrão de onde estarem as coisas. Não existem também as mesmas coisas, o que é muito bom, mas me estranha. Quando chegam as dificuldades, só quero  que tenha algo familiar pra poder me apegar e sentir tranquila. Não sei onde encontrar o que preciso, me sinto perdida ao ver tanta feira tanto objeto aleatório tanta comida tanta cor tanto grito tanta gente. Me dá vontade de fugir e não consigo nem apreciar a diversidade, a novidade de algo que sei que é tão lindo mas que acabo não conseguindo admirar.

Era exatamente o que eu queria, vir pro lugar mais distante e mais diferente quanto possível, mas agora, aqui, me é muito custoso. Me assusta, ao mesmo tempo que é exatamente o que eu buscava. Gosto da mudança, mas sou resistente. Exercitar a paciência e a abertura são meus desafios. 


domingo, 20 de agosto de 2023

me senti confortável na casa do luis e pensei em como me senti na casa do tobi. talvez o que eu sinta assim, em viagem, é o conforto de não estar com nenhum compromisso e poder descansar e passar um dia tranquilo, sem pressões. fora da minha própria casa, não tenho que cuidar de nada além de mim mesmo. quem sabe é esse o meu sonho de conforto, poder me desligar de tudo por fora de mim mesmo no lugar onde tudo o que me ronda habita juntamente comigo. 


me siento confundida por aqui; se me parece que a cada día que pasa quedo peor en el idioma y comprendo peor lo que me dicen. también siento más dificultad en respirar, mucho cansancio, me cuesta despertar todos los dias por las mañanas. no sé si es por la altitud, por que estoy comiendo poco, si tiene que ver con el clima, la falta de lluvia, el sol tan fuerte que me quema a toda mi cara haciéndome descamar, arder, doler. no tengo convicción. ahorita quisiera salir, pero como se ofrecieron a acompañarme he cambiado mi idea, quedándome en el hotel. no sé también lo que es ansiedad y lo que es adaptación a un nuevo lugar. tal vez un poco de los dos, pero cómo separar las sensaciones? tengo que escribir más. al menos mi terapia es el jueves. 

talvez seja também um pouco de tristeza, mesmo que não me pareça. ou falta de vitaminas, que causa tristeza. ou a loucura dos antidepressivos, de decidir tomar o ansiolítico e depois decidir não tomar mais. ou o excesso de mate, misturado com um pouco de tudo. falta de comida, falta de vitamina, irregularidade no antidepressivo, altitude, confusão linguística, cansaço, antibiótico, vinho, marijuana, o estranhamento de não estar mais sendo a pessoa solitária que sempre fui. agora me deu uma vontadezinha de chorar, o que seria ótimo se eu conseguisse. tem algo na minha garganta, como sempre. estou o tempo todo levando choques nas pessoas e objetos. 


es raro.

sinto como sou uma pessoa solitária. me estranha muito estar sempre entre pessoas, sempre esperar uns aos outros pra fazer coisas juntos, mudar de ideia conforme a decisão conjunta. ando passando momentos muito compartilhados, mais do que já tive em qualquer outro período da vida. por um lado, foi o que eu já tanto quis em certos momentos; por exemplo, quando morava junto com pessoas que apenas dava oi, bom dia, e nada mais que isso. sempre quis morar com alguém que compartilhasse os momentos comigo. antes de viajar pra cá, tinha isso em parte, mas agora é completo: reparto o quarto com alguém, tem mais duas pessoas com as quais combinamos tudo, almoçamos juntos, jantamos juntos, tomamos café da manhã juntos, estudamos juntos, saimos pra passear juntos. não todos o tempo todo, mas alguém todo o tempo.

é estranho pra mim esperar pra combinar de ir no mercado, na academia, na loja de roupas. me acostumei a fazer as coisas sozinha, ter essa independência. e gosto muito de chegar em um lugar e explorar sozinha, fazer o que quero sem precisar esperar nem combinar com ninguém. não queria que viessem me buscar no terminal de ônibus pra que eu pudesse sair caminhando sem saber pra onde estava indo e chegar com a surpresa de não me ter perdido. gosto também de me perder em segurança, porque quando to com alguém dependo dessa pessoa pra que me leve aos lugares e não olho direito os caminhos. 

aqui tem também a coisa da segurança. nos dizem o tempo todo pra tomar cuidado, pra não saírmos sozinhos, e sei que tem razão, afinal dois dos intercambistas aqui foram assaltados nas ruas em poucos dias sem ser à noite. sinto que se eu sair sozinha, nem que seja pra ir ao mercado, alguém vai me reprimir e dizer que estava correndo riscos. isso também não me agrada, mas não me agrada ser dependente de outra pessoa pra algo simples como dar uma caminhada na quadra. 

tá sendo diferente. gosto das integrações, mas me sinto distante porque não consigo compartilhar na mesma intensidade que os outros. mesmo assim, me sinto bem de estar junto, mas sinto falta dos meus momentos sozinha. agora, que sentei pra escrever, to com tanto sono e cansaço que não é como se eu realmente tivesse tirado meu tempo. quero caminhar, pegar a bicicleta do hotel, ir na academia, comprar minhas coisas no mercado. não desgosto de nada, mas estranho a tantas coisas. ao mesmo tempo, parece tudo completamente normal. 

terça-feira, 8 de agosto de 2023

São Paulo.

Chorei quando meus pés levantaram voo, e assim iniciei a viagem. Não eram lágrimas de tristeza, nem de felicidade; não eram também de saudade, nem de medo ou arrependimento. Foi tão natural e espontâneo que, naquele momento, quis chorar a viagem inteira. É algo tão raro de se acontecer comigo que me senti até feliz de estar molhando o rosto enquanto olhava pela janela para a asa do avião. 

É ao mesmo tempo tão estranho e tão normal estar em um lugar novo... Por um tempo parece inacreditável a ideia de ir pra uma cidade distante e desconhecida, parece que não tem como existir algo tão distinto, espaços tão distantes. Depois, esse sentimento passa. Chegando, parece tão normal: qualquer lugar é um lugar como qualquer outro, a única diferença é que é outro lugar. Apesar disso, não se dissolve o encantamento de ver algo nunca antes visto; mas justamente por ser um lugar qualquer, assim como o que nos originamos e qualquer outro que já passamos na vida, traz o brilho de algo à primeira vista mesmo pra o que nos é corriqueiro. 

Acho isso algo bonito das primeiras impressões. Pelo menos pra mim, me faz valorizar o que sempre vejo, e buscar sempre por alguma novidade. Tudo é tão parecido e tão diferente ao mesmo tempo que de imediato sinto como se eu já fizesse parte do que acontece, seguindo os fluxos naturalmente como se me fosse comum. Ando como se soubesse pra onde estou indo, com uma grande confiança que não coloquei na bagagem mas, mesmo assim, sempre anda comigo.

Assim segui os caminhos dos que andavam à minha frente, sabendo que iria chegar onde devia mesmo que não existisse tal chegada. Com mochilas pesadas e um desajeito natural de quem possui pouca experiência em carregar esse tipo de peso, fui guiada por calçadas, ônibus, trem, escadas rolantes, turbilhões de gentes. Nunca na vida tinha visto tantas pessoas e não imaginava que existia um local assim tão grande, tão difícil de assimilar. Fui seguindo, entendendo como as massas possuem influência. Difícil seguir contra essa força. 

Só por um lado. Por outro, enquanto segue a torrente horizontal de passos e passos, algo multilateral chama o olhar para ser descoberto, todos os espaços mostrando sua magnitude. Só tendo os olhos abertos pra ver beleza na loucura cotidiana, e só com um pouco de loucura é que se tiram as raízes do chão para que caminhem e voem em novos lares.

Fecha a janela, esteja consigo; não há nada lá fora que te demande. A demanda de dentro ela existe, mas mesmo assim não te demanda; é só porque quer, e ela quer que tu queira. E tu, tu quer querer? Abre teus olhos pra dentro, abre teus olhos pra ti; qual o benefício de evitar o que realmente te faz bem? Me conta porque não existe vontade de assoprar tua chama interior pra que a brasa se espalhe e vire realmente um fogo. Tua fogueira aquece e não queima, se alimenta transformando a estagnação, e a cada piscada de olhos que tu dá em direção a ela é mais uma faísca que te acende. Faz faíscas, expande essa luz: queira. Mas queira sem compromisso, e, antes mesmo de querer, faça. Acende tudo aquilo que não fala, mas que vibra por dentro de um jeito incontrolável que tu tenta controlar. Ninguém sabe melhor do que tu que é impossível deter esse movimento, então deixa ele ser. Nada que vem de dentro vai estar errado. Te deixa ser. 

Emocionada.

 Me sinto tão pouco emocionada em relação às coisas que acabo pensando que tem algo errado comigo. Como alguém pode sentir mais intensamente que eu uma felicidade que devia ser minha? Penso se não dou tanto valor pras coisas, ou se é tudo tão normal pra mim que nada me surpreende o bastante. 

Por outro lado sempre busquei algo assim. Quando era criança julgava as outras crianças que ficavam chorando ou rindo alto, não achava necessário e não queria ser assim. Hoje já tento imitar um pouco as expressões das pessoas, mas parece que nunca atinjo o que realmente deveria expressar. Acabo me envergonhando um pouco, e tentando imitar mais. O quanto to me afastando ou aproximando de mim mesmo com isso?

Ando tentando colocar sentido em coisas que nunca vi sentido algum, mas acaba sendo mais um dessignificar tirando de um extremo e colocando em um espaço neutro. Já fui contra muitas coisas, agora já não sou mais. Com isso, quem sabe fico ainda menos emocionada.

Gosto dos sentimentos, consto das emoções, gosto das sensações, mas não parece que tenho intensidades. Pelo menos não as instantâneas, e sim as que se desenvolvem ao longo do tempo. Parece que demoro pra assimilar o que acontece. Parece que minha forma mais instantânea de reagir é ficando com dúvida. O que isso significa?


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Amolecer.

É preciso amolecer
o que levo de convicção
os empedramentos
que precisam escorrer.
vêm primeiro como um...
difuso formigamento.
torna-se lava de início
ainda grossa e escura,
torna-se branda, tenra
em formas de cachoeira,
torna-se água, torrente
em lentidão a mover,
torna-se gás espesso
girando em falta de forma,
torna-se eu
solidificando sutilmente
sem deixar enrijecer,
sempre e sempre escorrendo...
me é preciso amolecer. 

Controle.

As frustrações chegam a partir de uma necessidade de controle, quando esse algo planejado não funcionou da maneira esperada. Passei aprendizados importantes sobre isso nos últimos dias quando pude ressignificar uma frustração a partir do sentimento de outras pessoas que estavam presentes no momento.

Fui dar um curso sobre viveirismo comunitário, mas senti que as pessoas que estavam lá não entenderam o que é o trabalho de um viveirista e quais são as etapas desse processo. Confundem viveirismo com trabalho de horta, com cultivo não compreendem a produção de mudas com fim nisso e percebem o coletivo e comunitário como pessoal. 

Na metade do dia, só me deitei na rede e fiquei pensando sobre a frustração que estava sentindo em relação ao não entendimento do que eu falava, e também dos empecilhos à atenção que estavam acontecendo. No meio da parte prática do curso, quando era pra todos experimentarem os processos, a metade do pessoal se distraiu fazendo uma fogueira no meio do espaço, o que atrapalhou muito a nossa dinâmica e tirou a atenção do que realmente importava ali. Na minha opinião do momento, porque inclusive o que realmente importava se modificou.

Foi muito frustrante pra mim, principalmente por pensar que era uma responsabilidade que eu não precisava ter tido; era algo que eu devia ter deixado de lado, mas, por outro lado, não teria acontecido se eu tivesse feito isso porque a nossa anfitriã fez de tudo pra que eu estivesse presente. De qualquer forma, foram esses sentimentos que me tomaram e me desanimei muito da continuidade do curso naquela tarde, me senti completamente sem energia e querendo desistir, deixando o resto pros meus colegas que estavam ali.

Mas não desisti e me coloquei pra falar o que eu achava necessário na continuidade do curso, já que quando incentivei minha colega a falar ela não colocou o que eu achava ser necessário naquele momento. E depois disso, que foi um resumo de tudo o que tínhamos apresentado sobre viveirismo, começamos uma roda de conversa sobre o que cada um achou do curso, e nesse momento precisei ressignificar o que tinha sentido.

Então foi algo muito intenso pra todo mundo, esse momento de partilha e troca. Pareceu que todo mundo gostou, e que ficaram pessoalmente tocados pelo curso e pela forma com que levamos ele. Pegaram as informações pra si de forma profunda, entraram em conexão com algo importante. E esse algo não foi exatamente o que passamos, mas foi importante o suficiente pra ficar. O que importou não foi o ensinamento em si, mas sim o que cada um absorveu dele, à sua maneira de acordo com suas vivências, e isso não pode ser frustrante. É, no fim, o que realmente importa.

Talvez o viveirismo não faça sentido pra todas aquelas pessoas. Acho que de fato não faz, ou pelo menos não de forma completa, talvez alguns fragmentos usados dentro do que cada um faz e sente. E isso é o bonito de ensinar, a intenção é que se construa o conhecimento único de cada um, sem certo ou errado e sem a ideia do conhecimento na folha em branco. Não é possível de forma alguma controlar o que o outro aprende, escuta, sente, ressignifica, absorve, deixa passar. E a intenção de trabalhar com comunidades é justamente essa, a de criar novas coisas, novas formas de agir, de ver o mundo, de sentir as experiências e gerar possibilidades.

Percebi como costumo querer controlar o que acontece, como não aceito que as coisas saiam fora do meu planejamento. E é justamente isso, a falta de controle, a aleatoriedade, as diferenças, as perspectivas, que tornam a vida e a convivência tão lindas. 

Deixei de sentir a frustração em relação ao objetivo primeiro do curso, que não foi atingido, mas aprendi que o objetivo desse trabalho, na verdade, é outro, muito além do que eu imaginava. E que é nesse objetivo que tenho que trabalhar, com as possibilidades abertas, sem controle, e me permitindo amolecer. 

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Perdas.

Ultimamente ando perdendo muitas coisas. Uma toalha, uma touca, uma luva, um guarda-chuva, um casaco, um protetor auricular, uma série de coisas que foram ficando pelos meus caminhos. Me faz pensar sobre como sempre tive apego a objetos materiais e como sempre me foi sofrido perder algo, ficava por dias na minha cabeça aquela ausência física do objeto deixado pra trás. 

Agora parece que nem faz diferença, como se as coisas tivessem perdido o valor. Mas não é como se tivessem valor e agora não considero mais, pelo contrário. Penso que o valor era eu quem colocava em coisas que não o possuíam em tal intensidade, e por isso agora viraram apenas o que são: coisas.

Lembro daquela já clássica frase que diz ser bom se perder pra poder se encontrar. Vejo um paralelo entre essas perdas simbólicas e as minhas perdas concretas, percebendo que às vezes posso ser tão concreta que preciso perder literalmente objetos pra perceber que eles não eram parte de mim. Como alguém que perdeu uma terceira perna pensando que passaria a sentir desequilíbrio, mas passa a se sentir mais leve e livre.

Nunca quis me sentir parada, mas com tantas pedras nos bolsos não tem como se movimentar. Não era possível tirar elas voluntariamente, eram todas partes de mim, mas conforme foram abrindo rasgos nas calças elas foram caindo sem deixar culpa, assim como o próprio tecido foi sendo deixado pra trás permitindo descobrir a verdadeira pele. A pele que deixa o sol queimar. 

Nessas idas e vindas, deixo. Nessas voltas e retas, busco o que já tenho mas não está aqui fisicamente. A concretude da leveza que permite ir e ser, os objetos que não nos descrevem nem são partes constituintes do corpo. O corpo que em si próprio também se desfaz em metáforas e muda de formas conforme a vida anda e os caminhos são trilhados. 

Estou perdendo coisas pra poder mudar e compreender que em verdade nada falta que eu já não tenha.

sábado, 8 de julho de 2023

Afeto.

Sinto o afeto transbordando, sem medo nenhum de entrar no oceano que é compartilhar isso com o outro. E que outro, pode ser um qualquer desde que retribua. Alguém que se transborda também e viramos correnteza de carinhos. Onde isso vai levar não importa, e a intenção é que não leve a lugar nenhum além do caminho percorrido no momento do afeto, quando os corpos se acariciam como se fossem velhos conhecidos, mas sem nunca se terem cansado um do outro. Quando os pés se encostam, as costas esquentam um peito, os dedos movem na nuca e os braços apertam forte um corpo pela primeira vez, num abraço cheio de amor e felicidade. A completude momentânea de se deixar levar pela espontaneidade, mesmo que não se conheça, e mesmo que nem vá se conhecer, sem o medo de criar ilusões de um romance que não é desejado. 

Que o amor não seja exclusivo de um romance concreto, mas passível de ser compartilhado com conforto, respeito e reciprocidade; que seja um vento morno de aconchego e tranquilidade nas peles e corações abertos. 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Violência temporal de segundo em segundo.

 Não quero acreditar em segundos. Como querer acreditar em algo tão intensamente violento? A suposta existência dos segundos faz com que eles sejam considerados como entidades reais, que nos apressam ou fazem esperar - apesar de mais apressarem. 

Parece que minha vida passou a ser pior quando comecei a me importar mais com segundos e minutos, ou melhor, quando percebi que segundos e minutos eram cobranças. Mas que diferença faz chegar em algum lugar aos 29, 30 ou 31 minutos de algum horário? E a diferença real de 40 pra 45? No fim, acaba sendo uma violência pra mim; perco parte da minha paz pra, por 20 segundos, não deixar passar dos 59 pros 00, sendo que mesmo que eu demore dois minutos não vai ter diferença alguma. Mas o que importa não é a diferença real, mas a inventada, e a ansiedade de quem espera, que já está ansiando mesmo aos 54. 

Saber o horário suposto em que um ônibus vai passar, observar o semáforo perdendo números até mudar de cor, fechar os olhos às 7:58 porque o despertador toca só às 8 em ponto, sabendo que vai se assustar ao ouvir. Sendo que dois minutos antes o corpo estava mais descansado e disposto do que depois de esperar, atentamente, deitado na cama, o toque estimulante e estressante de tons definidos por empresas de aparelhos eletrônicos. 

O único tempo que, pra mim, devia existir, é o natural do dia e da noite, e o ano poderia também ser dividido apenas pelas estações. Todo o resto da temporalidade é inventada e, pra mim, violenta na medida que nos impõe algo que temos que acreditar independentemente da vida que desejamos. Não quero ter cinco dias de trabalho e dois pra descansar, não quero a obrigação de sair de casa num temporal, ainda mais correndo de pés molhados pra não perder o horário. 

A violência temporal nos é imposta de segundo em segundo. A resistência é manter o passo lento, o respirar suave e o olhar no céu. 

Borda.

 É estranho o sentimento de não estar em nenhum lugar. Já não vivo em Porto Alegre porque minha intenção tá longe, mas não vivo ainda em nenhum lugar diferente daqui porque é onde meu corpo repousa e se move. Não sei como fazer pra conciliar cada coisa em seu lugar, o corpo e a ideia em coabitação pra dentro e fora da minha pele. Nem minha língua é a que quero falar, penso e tento escrever em espanhol, mas as frases me travam e percebo que não consigo me expressar o suficiente. E é um momento em que, especialmente, preciso me expressar, porque é tanta novidade que não posso deixar que as palavras me fujam justamente nesse momento da vida. 

Onde eu to, se é com ânsia de sair de um lugar e com medo de chegar no outro? Como eu tô, se o que vivo não é nem o que me acontece e nem o que me vai acontecer? Tô sentindo nesse meio termo, nesse espaço em que nem subo nem desço, nem entro nem saio, como se estivesse flutuando à espera. E ao mesmo tempo, mais do que nunca, precisando agir, porque nada se resolve sozinho, nem a vida de cá e muito menos a vida de lá. Sigo esse caminho por la orilla. 


terça-feira, 6 de junho de 2023

Deller.

Tenho medo que o antidepressivo me tenha feito entender menos do que acontece comigo. Que ele mude as ligações e mensagens dos meus neurotransmissores a ponto de não me permitir enxergar sentimentos e sensações, e por isso me sentir melhor, por ser forçado a ignorar algo que tá dentro. Pensei isso quando percebi que me sentia bem há meses, sem ficar num estado de tristeza maior que no momento exato em que ela acontece, mas que tava começando a sentir muita ansiedade e, apesar de pensar que tava bem, ver que meus dedos estavam todos sangrando de arrancar pele com os dentes. Como posso estar bem se minhas cutículas estão constantemente na minha boca deixando sangue correndo pelo canto das unhas? Não pode ser assim.
Pensava que já tava bem o suficiente pra poder parar ou diminuir a dose dos remédios, mas isso de roer os dedos e o surto repentino que tive e comentei nos últimos textos me fez querer parar justamente pelo motivo contrário; talvez eu não esteja suficientemente bem, e pra melhorar prefiro ser capaz de entender por que sofro do que ter enganos nas minhas sinapses que me fazem sentir que tá tudo bem. Mas é tão complexo. Posso estar certa, posso estar errada ou pode simplesmente não ter nada a ver com nada disso.
O que importa é realmente estar bem, não importa a maneira? Claro que não quero mais sofrer, há 15 anos tenho crises e apelei pra um tratamento psiquiátrico porque simplesmente não aguentava mais viver dessa forma. Cheguei à conclusão que isso nunca vai passar na minha vida, o que é muito frustrante, mas acho que realmente não tem jeito além de me acostumar com as reduções e tentar sempre diminuir mais e mais os sintomas, apesar de sabendo que sempre podem voltar a qualquer momento.
Queria saber se isso tudo faz algum sentido. Queria saber como são as mensagens dos meus neurônios e o que se modifica nelas tomando succinato de desvenlafaxina ou qualquer outro medicamento que seja. Queria saber como faz pra chorar, porque penso realmente que isso resolveria muitas coisas na minha vida. Mas não choro, não entendo o que tem dentro de mim seja com ou sem antidepressivos, e tenho essas confusões sobre o que é o certo a se fazer. Mudar doses sem acompanhamento médico é sempre ruim, mas acho que ela não ia aceitar minha decisão e eu ia acabar diminuindo igual... pelo menos não parei de tomar, igual muitos fazem. O que será que vai mudar em mim?

domingo, 28 de maio de 2023

Superestimulada.

Pra quem começou a ter crises de ansiedade com 10 anos de idade e hoje tem quase 30, ou seja, pra alguém que passou mais anos da vida lidando com isso do que sem se sentir assim, não é possível saber como a vida seria se não fosse dessa forma. Assim como alguém que nasceu cego não consegue imaginar as cores, alguém que não sabe não sentir ansiedade não sabe como é isso. 

Hoje foi a primeira vez na vida em que eu realmente percebi isso. Estava em um taller de candombe com um professor uruguaio, e no mesmo local estava  ocorrendo também o taller de baile de candombe. Sentamos, os tamboreiros, em um círculo de um lado do espaço e as dançarinas ficaram do outro lado. No meu lugar, meio de lado, eu podia ver os movimentos das bailarinas pelo canto dos olhos, ao mesmo tempo que, pelo outro canto dos olhos, via meus colegas do tambor. Com o foco da visão, tentava mirar fixamente o professor e seu tambor, mostrando os toques que precisávamos fazer. 

Tem gente que nunca sentiu algo assim como um superestímulo. Pra mim, prestar atenção na aula já era o suficiente, tamanha a densidade de conteúdos que ele estava passando. Mas não sou capaz: meus olhos e atenção são puxados pra tudo que acontece à minha volta, e esses estímulos além do principal fazem um ansioso ficar observando o que acontece ao seu redor ininterruptamente, mesmo sem estar buscando nada que aqueles olhares vão dar.

Mesmo com isso, mantive o foco absoluto no professor. Mas o barulho de 30 tambores, as palmas em outro ritmo das professoras de dança, os pés das bailarinas se mexendo na visão periférica, tudo isso é demais pra conciliar com uma tentativa de hiperfoco no professor. 

Quando fez um intervalo, saí praticamente correndo pro lado de fora do lugar. Um cara que saiu pra fumar perguntou se tava tudo bem, eu disse que sim e expliquei um pouco: é muita informação, preciso dar uma descansada na cabeça porque to ansiosa. Ele não perguntou muito, inclusive respondi coisas além do que ele questionou, senti necessidade de explicar; mas ele nem me ignorou e nem ficou superinteressado na história, o que foi bom, talvez ele compreenda um pouco de ansiedade.

Mais umas três pessoas perguntaram isso, e cada uma teve uma reação diferente. Pra uma eu disse sim, to tranqui, e isso bastou pra ela. Pro professor, respondi que sim e que a aula tava sendo incrível, só era coisa demais e eu precisava descansar. Pra outra, respondi que eu tava com estímulos demais e isso me dava ansiedade, e ela foi incapaz de responder. Perguntou perguntas sem resposta, e percebi várias vezes que ela era simplesmente incapaz de entender porque nunca sentiu algo parecido. O que é estranho pra mim, alguém que tem isso como sendo a normalidade. 

Pensei sobre isso. Talvez eu fosse a única pessoa ali que tava sentindo algo do tipo. Pensei que, talvez, é sempre assim, só eu to sentindo isso. E, além disso, os outros não podem nem imaginar o que to sentindo, porque é impossível entender. 

Nesses momentos, faço o que preciso fazer. Em outra situação que se seguiu a essas aulas, peguei carona com alguém que pra mim conviver é muito ansiogênico e ele me colocou em uma série de situações ansiogênicas uma pior que a outra. Quando consegui, finalmente, sair do carro, saí praticamente correndo com o meu tambor. Ele e a outra caroneira gritaram algumas vezes Obrigado, De nada, coisas assim, chamando meu nome e estranhando minha ação tão abrupta de fugir daquela série de situações. Olhei pra trás e disse: desculpa, é que eu tava me sentindo mal e precisava sair dali. 

Daí, depois que o motorista foi embora, a caroneira veio atrás de mim perguntando se eu tinha dito que tava me sentindo mal, e por que isso. Nesse momento, sendo ela a mesma que não entendeu antes quando falei do superestímulo, justifiquei minha ação assim: tenho transtorno de ansiedade, por isso não soube lidar com essa situação e precisei me retirar. Resposta automaticamente suficiente. Mas por que preciso justificar minha ação com um atestado clínico?

Quero poder agir sem culpa e podendo fazer o que sinto que é melhor pra mim, sem que isso cause tanto espanto e tantos questionamentos. Principalmente se é numa questão como essa, em que não adianta perguntar e obter resposta porque é impossível pra alguém que nunca se sentiu assim saber o que realmente se passa. Assim como é impossível pra mim saber como é não sentir ansiedade.

Tu tá bem?

O que devo responder quando alguém pergunta se eu to bem, mas a resposta tá além do sim e do não, em um lugar que nem eu mesma compreendo a resposta?

Sim: é mentira, porque a resposta não tá na categoria de dualidade

Não: é mentira também, porque, além de estar fora da categoria de dualidade, vai provocar uma contra-resposta que não vou saber e nem querer responder.

Mais ou menos: não existe meio termo; isso seria como um sem sensação, numa escala linear indo do sim até o não, mas a escala não é essa, inclusive não existe escala. Estando além da dualidade, não existe meio termo.

Melhorando: implica que estava mal e que agora estou ficando bem. De fato não é um estado agradável, mas que ele passe não significa exatamente uma melhora. Pode ser um processo. 

To em processo: alguém vai perguntar que processo, ou o que aconteceu. Essas respostas são complexas demais pra serem ditas, isso quando é possível saber e expressar.

To assimilando: alguém vai perguntar assimilando o quê, ou o que aconteceu. Mesma coisa.

Parece que todas as respostas possíveis vão implicar em uma mentira ou uma contra-resposta em que eu vou precisar explicar algo. A maioria das pessoas ou não quer saber, ou não vai ser capaz de entender. Não vale a pena gastar palavras, energia, sinceridade, pra qualquer um desses dois casos.

O melhor é ser sutil, não demonstrar bruscamente o que está acontecendo, que é o que ando fazendo. Acabo praticamente correndo pra outro lado, seguindo minha intuição do buscar um lugar em que as coisas estejam passando da forma mais próxima possível do contexto que sinto que preciso estar. Isso leva a essas perguntas. Ao mesmo tempo, fingir que tá tudo bem e agir normalmente é o que sempre fiz a vida toda. Como conciliar isso?

Não preciso demonstrar, mas não preciso mentir. Posso agir de forma mais tranquila e sumir da situação, sem causar espanto e até sem ser percebida. Se perguntarem outro dia, melhor, aí vou ter mais capacidade de responder. 

Se eu to bem?

Não sei.

Essa é outra resposta que causa dúvida em quem ouve, e causa também uma culpa de não saber explicar o que a pessoa quer saber. Se respondem perguntando: como assim? É quase obrigatório dar a explicação de por que eu não sei. Mas essa explicação simplesmente não existe, eu não sei porque não sei, eu faço terapia porque não sei e mesmo assim não descubro, e, sinceramente, tem coisas que a gente não precisa saber, nem nós mesmos e nem nenhum outro.

É tudo tão complexo. Acho que essa foi a melhor forma de expressar o que to sentindo. 

No fim, qualquer coisa que não for um sim não vai ser bem recebida. É como se não pudesse existir outro estado além do bem, que é o estado desejado e desejável que todos estejam. Como explicar que não é preciso estar bem, mas que isso não significa que não esteja tudo bem/esteja tudo mal?


domingo, 21 de maio de 2023

Trabalho braçal.

Hoje aprendi a usar algumas ferramentas da agricultura.

Inseparável de quem trabalha na lida é o facão, sempre na cintura. Nos guia e protege, abrindo os caminhos e dizendo que podemos passar. Com ele, abrimos as trilhas já existentes e podemos desbravar o ambiente descobrindo novos rumos. Facão na mão, não há nada que não possa ser trilhado ou criado. Uma expansão do braço que é fluida, corta o que não se deseja e molda o que é preciso modificar. Pode se tornar um perigo pra quem não tem coragem, mas a tentativa e olhar atento ensinam seu uso.

Uma extensão maior ainda do braço é a foice, que chega até lugares mais distantes pra expandir os rumos que vislumbramos. Enxerga o que o facão não vê, o que vem mais de cima ou mais de baixo, na distância mais imaginada do que vista. Com sua lâmina criamos meias-luas e círculos aos nossos lados, baixando cipós e galhos, desenredando as teias reais e imaginárias do que nos pode prender. 

A enxada é bruta e terna de uma só vez, batendo com força pra retirar plantas indesejadas e amolecer a terra. Cria um ambiente agradável, mais fácil de se respirar quando imerso nele. Revira a terra trazendo coisas à tona e derruba o que vem se espalhando e trepando sobre nossas bases. Tudo o que se move se transforma, e esse é o potencial de mistura dos elementos, criando o berço pra que algo possa nascer.

Mais forte e intensa do que a enxada é a grande e pesada picareta, abridora de buracos, quebradora de pedras. Com seu peso, rompe o que impede que as raízes ultrapassem, o que não deixa sementes se estabelecerem, o que precisa sair pra que outra coisa possa aparecer. Permite que se veja o que há nas profundezas da terra, os segredos escuros por baixo da superfície, os corredores secretos dos seres minúsculos. Faz subir o cheiro do que está escondido e quebrar o que impede que algo cresça, pra uma semente ou muda poder ser plantada com acesso à energia de todos os estratos.

A pá por sua vez é o movimento que leva um suprimento de um lugar ao outro, que libera espaço e ajuda a carregar mais rapidamente algo que demoraria mais pra se movimentar. Tirando pedras, terra, folhas, permite a mudança e a reviravolta. 

Já a lima é uma chave importante. Pequena e invisível da lida, tem seu papel essencial na potencialização das ferramentas. É o que permite que elas trabalhem, fazendo o fio e dando funcionalidade. Com seus detalhes e sutilezas, ao mesmo tempo que sua força de desgaste cria a lâmina que corta e faz o trabalho prosseguir. Sem essa ferramenta tantas vezes esquecida, o manejo dos espaços seria impossível. A lima é a preparação, o que traz a força das ideias à realidade concreta e permite que o primeiro passo seja dado. É como o fogo que se acende no peito trazendo a realidade da ação imaginada.

Aprendo muito com as ferramentas, sobre o trabalho e sobre mim. Tudo o que se descobre, as similaridades do fora e do dentro, que parecem separados mas são um só. Ser função num sistema, ser objeto que molda, ser natureza que cria, ser natureza que é criada a cada instante, cada aprendizado, cada sentimento, cada intuição. Cada cheiro de terra, cor de fruto e textura de folha, cada som de facão, enxada e lixa, cada lampejo que passa por dentro, tudo é trabalho, e o real significado do trabalho é que seja parte indispensável da vida, não pelo outro mas por si: pra se criar um motivo de viver. 


sexta-feira, 19 de maio de 2023

V de espadas.

 O tarô, como sempre, me dá uma grande lição; eu queria perguntar sobre os motivos da ansiedade que sinto e o que devo fazer pra me sentir melhor, mas nem precisei, porque na minha carta semanal do conselho da lunação já me veio essa resposta.

Ainda sou estudante do baralho de Marselha, como acho que pra sempre vou ser. O que penso sobre o V de espadas é a instabilidade mental e conflitos transponíveis, algo que se estabelece depois de uma estagnação pra ser ultrapassado, não sem alguma dificuldade, e finalizar em uma harmonia. 



Meus estudos são sempre com Marselha, mas gosto de usar Waite como uma forma de expandir o significado dos números e naipes, sempre cuidando pra não me apegar à imagem desenhada; penso que isso pode ser limitante, mas vejo como um auxílio pra quem tá aprendendo. Assim, olhei a imagem e percebi a derrota em uma batalha, dois perdedores e um vencedor. Sendo espadas o naipe da mente, lembro de uma frase que meu pai costuma dizer: "quando algo não tem solução, já está solucionado". 

Essa derrota mostrada na carta toma forma também de uma desistência, visto que as pessoas ao fundo ainda estão vivas e aparentemente sem ferimentos; na verdade não parecem ter perdido, mas decidido ir embora. Foi uma escolha, antes de serem incapazes. Solucionaram sem buscar uma solução ativamente, mas aceitando a única solução possível.

Com isso compreendi o que minhas próprias palavras disseram quando olharam pra essa carta como meu conselho da semana: instabilidade mental e conflitos transponíveis mostram que um excesso de pensamentos não leva a algo construtivo senão a derrota, que mostra a sabedoria em transpor esse conflito através da desistência pra que novos caminhos possam ser trilhados. 

O momento pessoal que vivo é de muita ansiedade, e percebi, com isso, que quero coisas demais ao mesmo tempo e tento exercer todas elas, obviamente sem sucesso na maioria. Tenho dois trabalhos, a faculdade, quero tocar bem vários instrumentos e compor músicas, escrever poemas e outros textos, ler poesia, literatura e trabalhos sobre temáticas que me interesso, quero me alimentar bem e me exercitar na academia, pedalando, no yoga e aprendendo a dançar, meditar, aprender a mexer na câmera fotográfica que tenho e tirar fotos de plantas e paisagens, terminar minha carteira de motorista, dar rolê na noite com amizades, ver amizades sem ser em rolê, aprender a falar espanhol, não deixar o inglês de lado, estudar tarô, exercer minha magia, e além disso tudo resolver situações que nem existem, como três relacionamentos irreais e dificuldades de um intercâmbio que ainda não fui selecionada. Coisas demais pra focar. Não existem prioridades; ou é uma prioridade, ou não é. E o que é minha prioridade, o que é meu foco, e o que são as demais coisas mais importantes e que quero realmente realizar agora?

O naipe de espadas sempre vem atrás de mim, aqui com meu sol e mercúrio em virgem e lua em capricórnio, além dos aspectos que me fazem ter dificuldade em entender sentimentos e comunicar eles pra mim mesmo. Sempre a mente, sempre a ansiedade que não cessa; o V de espadas vem me trazer muita sabedoria em um momento óbvio que não tinha percebido o que fazer. E vem me relembrar o ensinamento que meu pai fala repetidamente desde que eu era criança, e que por muito tempo não dei valor e até achei irrelevante ser repetido tantas vezes. Mas é verdade: se não tem solução, tá solucionado.

A sabedoria dessa carta, nesse meu momento, é a de desistir dessa briga com o tempo e com minha própria energia. Às vezes, a derrota é uma vitória e o único jeito de sair vitorioso. 

sábado, 13 de maio de 2023

Felicidade.

Um dia me peguei observando um grupo de 100 crianças brincando em um grande campo. Elas corriam, chutavam bolas, pulavam cordas, se escondiam, gritavam, mexiam seus pequenos corpinhos com seus sorrisos no rosto. 

Quando eu era criança, não me identificava com os outros da minha idade e tinha a tendência de achar todos eles idiotas. Fui uma criança parada, silenciosa, envergonhada, reprimida e, por isso, julgadora. Enquanto observava aqueles montes de criancinhas, meu primeiro pensamento foi o mesmo da minha infância: que idiotas, pra que ficar correndo e gritando? E meu segundo pensamento, pela primeira vez, tentou buscar essa resposta. 

Como não tinha outra coisa a fazer senão isso, fiquei ali sentada observando de longe. Adultos dão vários motivos pra necessidade das crianças brincarem; o desenvolvimento da coordenação motora, da força muscular, de habilidades espaciais, de relações sociais, construção de identidade, imaginação, isso entre as que pensei agora. Mas, pras crianças, nada disso interessa, elas não possuem esses motivos. Por quê, então?

Se não pensam em fazer amizades, se não pensam em desenvolver seus corpos, mentes e emoções, pra que ficar fazendo coisas aparentemente tão sem sentido? Então me veio a resposta: pra gerar felicidade. Não há outro motivo pra brincadeira senão o de gerar felicidade, acender algo dentro de si que vai agir como uma energia, um impulso que traz sensações boas.

Perceber isso me entristeceu e me fez pensar. Me deu vontade de sair correndo e começar a ir atrás das criancinhas, gritando junto a elas, compartilhando seus brinquedos e brincadeiras, mas algo me impediu. Um pouco de preguiça, de frustração, de culpa, de vergonha, de incapacidade também, não sei exatamente. Além da tristeza, a pergunta: o que eu faço exclusivamente com a intenção de ser feliz? O que eu faço que me acende algo dentro do peito, que me faz ter vontade de viver, de agir no mundo, que me dá a força física de levantar o corpo e exercer o que quer que seja?

Me percebi em um ciclo vicioso. Não tenho energia, então não consigo realizar coisas pra mim; não consigo realizar coisas pra mim, então não tenho energia, porque é isso que gera a vontade de viver. As coisas sem sentido são as que dão força de vontade pra exercer as tarefas necessárias da vida, as coisas sem sentido que colocam a felicidade de conseguir viver. A realização da criatividade pela criatividade, do movimento físico pelo movimento, da espontaneidade apenas pela expressão, sem a intenção de mostrar pros outros, de produzir uma obra, de se exercitar, é o que nos faz ser felizes. E me entristeceu perceber que não faço isso.

Pensei sobre todas as coisas que eu gosto; de tocar instrumentos, mas tenho vergonha mesmo de ensaiar pra mim mesmo porque me comparo aos outros, me considero ruim, penso que tenho que poder mostrar isso pra alguém com propriedade e assim perco a espontaneidade e não tenho a energia necessária pra fazer. Escrever, mas na hora que tenho as ideias não paro de fazer o que estou fazendo pra colocar elas no papel e quando decido fazer isso, acaba sendo um compromisso conseguir escrever e, além disso, escrever algo de valor estético e poético, e assim travo e não acontece. De me movimentar, mas tenho vergonha dos meus movimentos e julgamentos que posso receber sobre eles, mesmo que saiba que na verdade a única pessoa que está julgando sou eu mesma, além da preguiça e falta de energia pra mover mais do que alguns dedos pra escrever essas palavras. De observar paisagens e meditar, mas o tempo é tão curto e tenho tantas coisas a fazer que isso acaba sendo um desperdício dos míseros poucos minutos que me dedicaria nessa atenção.

Consigo identificar algumas coisas que me deixam feliz com esse único objetivo, mas acabam sendo ilusórias porque não passa de um engano. Posso me embebedar, fumar maconha, fazer uso de qualquer substância que sei que vai me trazer bons momentos de diversão e felicidade, mas não é o suficiente pra gerar essa chama no peito que dá vontade de viver.

To procurando. Mas o pior dessa procura é encontrar, mas não conseguir exercer e prosseguir sentindo vazio, triste e frustrado com a vida, que é tão linda. 

terça-feira, 18 de abril de 2023

A Sacerdotisa e A Justiça.


O dois e o oito: ambos números de equilíbrio. Nunca tinha me dado conta de como essas duas cartas de Marselha são tão parecidas até tirá-las conjuntamente como um conselho. A intenção era apenas uma carta, como peço a cada entrada de lunação, mas dessa vez, sem perceber, peguei duas como sendo uma só e apenas aceitei porque o tarô nunca erra em seus sinais. Foi um espanto perceber dois arcanos maiores, algo que não acontece tão frequentemente considerando a relação de quantidade entre estes e os menores. E ainda dois tão semelhantes.

A mensagem demorou um pouco pra aparecer, e veio a partir das comparações. Primeiro as semelhanças: o manto azul sobre o vestido vermelho, os pés cobertos, as mãos segurando algo à frente, o dourado dos adornos, as coroas, a posição sentada, o rosto sereno, o objeto cadeira/manto atrás da personagem em formato parecido. Depois, as diferenças, mais sutis: os objetos diversos nas mãos, sendo um livro na sacerdotisa e uma espada e uma balança na justiça, a direção do olhar, para a esquerda ou para a frente, a fluidez ou rigidez do plano de fundo, o número. 

Como força yin, as duas chamam o olhar para nós mesmos, para os próprios processos internos ou, mesmo quando externos, baseados na subjetividade. Meu recado da semana foi pra ler o livro de mim mesmo, olhando pra dentro e imergindo nos meus sentimentos e fantasias, e a partir disso  observar e avaliar, com coragem e parcimônia, o que fica e o que deve ir. 

Um recado especial me deram os planos de fundo das duas cartas: enquanto a Sacerdotisa tem uma cortina solta, com ondas e curvas, a Justiça tem uma cadeira perfeitamente sóbria e simétrica. Essas formas lembram asas, o que me mostra pra viajar nesse material interno, pra voar por todos os cantos de mim, me permitindo planar pra fazer essa observação e avaliação atenta. Sinto também o recado de organizar esse material amplo, que é bagunçado nas primeiras asas que olham pra trás e organizado nas asas que olham pra frente, impelindo a uma clareza de visão, assim como o terceiro olho na fronte. 

Outras mensagens de internalização aparecem nos pés, que na verdade não aparecem, e no manto azul que recobre o vermelho. É pra que eu voe cobrindo a racionalidade e sem os pés no chão; que a história desse livro da vida possa ser lida com a intuição, pra isso usando a coragem e as ferramentas disponíveis pra trazer o equilíbrio. Mas que seja fluido como os panos, como as águas, como uma balança estabilizando um peso, como um vento que sacode asas, como as ondas que o inconsciente traz de fundos tão fundos. 

São sábias mulheres que muito ensinam em suas figuras tão estáticas de papel e tinta, mas tão móveis em todos os olhares e sentidos que nos podem trazer. 


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Não me leve a mal.

Tive que me obrigar a perder parte da minha inocência pra ser capaz de viver nesse mundo, e, mesmo assim, não foi suficiente. A parte que sobrou duvida que algumas coisas são realidade, e, quando percebe que é verdade, já não há mais tempo pra reagir. Enquanto isso, o outro lado vive sua vida normal de homem que arranja desculpas e se vitimiza pra justificar um assédio, e é legitimado pela falta do constrangimento que não fui capaz de proporcionar. 

Um dia inteiro me oferecendo cerveja, me chamando de longe pra encher meu copo, falando comigo em inglês e cantando músicas românticas. Na inocência, pensei ser só a ação de um velho bêbado sendo de seu próprio tempo, e justamente é esse o problema: ele era exatamente isso, um velho bêbado do seu próprio tempo, o que foi justificativa suficiente pra que, na primeira oportunidade, se grudasse nas minhas costas enquanto eu lavava um copo na pia.

Pediu desculpas, não me leva a mal, achei que tu fosse ela, e aponta pra outra mulher próxima, como se nela ele pudesse fazer o que havia feito; provavelmente nem a conhecia. A minha resposta foi só um qual é que é meu, respondida por um não me leva a mal não, e pronto: mais um homem que vai continuar sendo exatamente como é. 

É tão difícil isso de ser responsável até pelo assédio que recebo, pensando que pra mudar algo, pra isso não acontecer de novo, sou eu que preciso reagir, eu que preciso fazer algo. Eu que preciso ser responsável por dizer de alguma forma, seja branda ou bruta, pro velho homem branco que ele agiu mal. É quem sofre que fica a cargo, primeiramente, de ensinar o assediador, já não bastasse todo o peso de ser assediado. E, assim, acaba não mudando muita coisa, por já ser gasto demais de energia ter sofrido isso até pra poder reagir no momento. É mais fácil deixar assim mesmo e não se preocupar, pra não se incomodar com a resposta justificadora e sem razão do outro. 

Mas não quero que seja assim. Quero, primeiramente, não passar por isso de novo, mas, caso aconteça, não ser inocente o suficiente pra pensar à primeira vista que foi sem querer, e, à segunda vista, pra não ter palavras de repulsa pra expor o ato. Quem não tem razão é que tá vencendo na sociedade. É um peso ter razão e ser tomado como louco, mas peso maior ainda, pra todas, é ter que ficar em silêncio.

sábado, 15 de abril de 2023

Cegueira colonialista.

 Tem coisas que algumas pessoas não conseguem entender, por estarem demasiadamente concentradas no próprio ego. Presenciei algo assim há poucos dias, experiência que foi potencializada por uso de psicodélicos, fato que não retira a veracidade do relato e inclusive o torna ainda mais real. Era um show em um festival de música; Ọ̀ṣẹ́ẹ̀túrá Africa'n Jazz no Festival Pira Rural. Foi algo inacreditável. O artista principal era um nigeriano, Akin, tocando bateria e dividindo o palco com uma percussionista, uma baixista e um saxofonista. Inacreditável é o adjetivo que tenho pra isso, fiquei refletindo sobre como era possível ensaiar coisas tão absurdamente complexas, pensando onde estavam os limites dos combinados e da improvisação e em como cabia na cabeça daqueles músicos coisas tão virtuosas assim. Parecia que cada um tocava seu instrumento em um ciclo dividido em tempos diferentes dos tempos do outro, se sobrepondo de formas difíceis de compreender, mas que em algum momento se encaixavam de novo perfeitamente e seguiam seu caminho conjunto até se perderem em outros rumos distantes pra depois se encontrar de novo, em ciclos musicais de altíssima qualidade. Mas o que venho contar não é sobre a música em si, mas sim sobre a falta de capacidade de escuta, não apenas da música.

No palco era um nigeriano que convidou outros dois músicos, um de Angola, o Kizua, e um da Costa do Marfim, o Loua, que inclusive é conhecido meu e me trouxe uma admiração tremenda ver o quão absurdo ele é como músico. Akin, entre as músicas, falava um pouco com a plateia sobre temas da cultura africana e dava sua real contando as impressões sobre os outros e sua visão do racismo vivendo no Brasil. Ele disse que, quando se ouve uma pessoa negra falando de sua cultura, não se deve pressupor os motivos de algo ser assim ou daquele outro jeito baseado em preconceitos, mas sim buscar saber o real motivo das coisas, perguntar, procurar entender. É comum pensar que uma cultura age de tal forma por tal e tal motivo, o que é sempre um pressuposto racista e colonizador de quem pensa que sabe de tudo e se vê como superior, sem conseguir abrir os sentidos pra outras vivências além da sua, colonizadora. E foi nesse contexto que o artista foi repetidamente alvo de tentativas de silenciamento através de manifestações da plateia, branca, batendo palmas incessantes e gritando frases como "fora colonialismo" enquanto um negro, nigeriano, africano, olhava de cima de um palco dizendo resumidamente, "não sejam colonialistas" e ouvia dessa plateia a simples resposta: "não estou te ouvindo", egoicamente mostrando sua falta de empatia e desinteresse completo em compreender o outro. 

Como se não bastasse, a falta de escuta não foi apenas no discurso, mas também na música. Era algo a ser contemplado, com atenção diferenciada, mas eu e alguns amigos percebíamos como aquilo era tido por muitos como apenas uma festa qualquer, uma música legal pra ficar louco, pra gritar, tomar um trago, sem entrar na complexidade da mistura do Brasil com a África, com elementos do jazz, tambores, rap, línguas nativas, cantos étnicos, reais anticoloniais, toda a força e intensidade daquelas influências tão diversas que formaram algo tão único como o que estava à nossa frente. Nada importava, enquanto eu e algumas pessoas mais interessadas e sensíveis estávamos quase que hipnotizados olhando aquele verdadeiro show. Foi bem frustrante pra mim perceber esse racismo nada sutil, essa falta de empatia, de interesse, esse excesso de loucura que não dá valor pra coisas fantásticas que dificilmente se tem a oportunidade de ver. A música como algo que pode nos levar a tantos lugares, ensinar tanto, trazer tantos sentimentos, lampejos, ter tanta intensidade. Compartilhei isso com amigos que concordaram comigo e sentiram o mesmo: eles simplesmente não entendem. Mas nós entendemos e fomos tocados profundamente pela arte multicultural, essa coisa tão potente que o Brasil é capaz de proporcionar a quem é capaz de ver.