Tem coisas que algumas pessoas não conseguem entender, por estarem demasiadamente concentradas no próprio ego. Presenciei algo assim há poucos dias, experiência que foi potencializada por uso de psicodélicos, fato que não retira a veracidade do relato e inclusive o torna ainda mais real. Era um show em um festival de música; Ọ̀ṣẹ́ẹ̀túrá Africa'n Jazz no Festival Pira Rural. Foi algo inacreditável. O artista principal era um nigeriano, Akin, tocando bateria e dividindo o palco com uma percussionista, uma baixista e um saxofonista. Inacreditável é o adjetivo que tenho pra isso, fiquei refletindo sobre como era possível ensaiar coisas tão absurdamente complexas, pensando onde estavam os limites dos combinados e da improvisação e em como cabia na cabeça daqueles músicos coisas tão virtuosas assim. Parecia que cada um tocava seu instrumento em um ciclo dividido em tempos diferentes dos tempos do outro, se sobrepondo de formas difíceis de compreender, mas que em algum momento se encaixavam de novo perfeitamente e seguiam seu caminho conjunto até se perderem em outros rumos distantes pra depois se encontrar de novo, em ciclos musicais de altíssima qualidade. Mas o que venho contar não é sobre a música em si, mas sim sobre a falta de capacidade de escuta, não apenas da música.
No palco era um nigeriano que convidou outros dois músicos, um de Angola, o Kizua, e um da Costa do Marfim, o Loua, que inclusive é conhecido meu e me trouxe uma admiração tremenda ver o quão absurdo ele é como músico. Akin, entre as músicas, falava um pouco com a plateia sobre temas da cultura africana e dava sua real contando as impressões sobre os outros e sua visão do racismo vivendo no Brasil. Ele disse que, quando se ouve uma pessoa negra falando de sua cultura, não se deve pressupor os motivos de algo ser assim ou daquele outro jeito baseado em preconceitos, mas sim buscar saber o real motivo das coisas, perguntar, procurar entender. É comum pensar que uma cultura age de tal forma por tal e tal motivo, o que é sempre um pressuposto racista e colonizador de quem pensa que sabe de tudo e se vê como superior, sem conseguir abrir os sentidos pra outras vivências além da sua, colonizadora. E foi nesse contexto que o artista foi repetidamente alvo de tentativas de silenciamento através de manifestações da plateia, branca, batendo palmas incessantes e gritando frases como "fora colonialismo" enquanto um negro, nigeriano, africano, olhava de cima de um palco dizendo resumidamente, "não sejam colonialistas" e ouvia dessa plateia a simples resposta: "não estou te ouvindo", egoicamente mostrando sua falta de empatia e desinteresse completo em compreender o outro.
Como se não bastasse, a falta de escuta não foi apenas no discurso, mas também na música. Era algo a ser contemplado, com atenção diferenciada, mas eu e alguns amigos percebíamos como aquilo era tido por muitos como apenas uma festa qualquer, uma música legal pra ficar louco, pra gritar, tomar um trago, sem entrar na complexidade da mistura do Brasil com a África, com elementos do jazz, tambores, rap, línguas nativas, cantos étnicos, reais anticoloniais, toda a força e intensidade daquelas influências tão diversas que formaram algo tão único como o que estava à nossa frente. Nada importava, enquanto eu e algumas pessoas mais interessadas e sensíveis estávamos quase que hipnotizados olhando aquele verdadeiro show. Foi bem frustrante pra mim perceber esse racismo nada sutil, essa falta de empatia, de interesse, esse excesso de loucura que não dá valor pra coisas fantásticas que dificilmente se tem a oportunidade de ver. A música como algo que pode nos levar a tantos lugares, ensinar tanto, trazer tantos sentimentos, lampejos, ter tanta intensidade. Compartilhei isso com amigos que concordaram comigo e sentiram o mesmo: eles simplesmente não entendem. Mas nós entendemos e fomos tocados profundamente pela arte multicultural, essa coisa tão potente que o Brasil é capaz de proporcionar a quem é capaz de ver.
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