Pra quem começou a ter crises de ansiedade com 10 anos de idade e hoje tem quase 30, ou seja, pra alguém que passou mais anos da vida lidando com isso do que sem se sentir assim, não é possível saber como a vida seria se não fosse dessa forma. Assim como alguém que nasceu cego não consegue imaginar as cores, alguém que não sabe não sentir ansiedade não sabe como é isso.
Hoje foi a primeira vez na vida em que eu realmente percebi isso. Estava em um taller de candombe com um professor uruguaio, e no mesmo local estava ocorrendo também o taller de baile de candombe. Sentamos, os tamboreiros, em um círculo de um lado do espaço e as dançarinas ficaram do outro lado. No meu lugar, meio de lado, eu podia ver os movimentos das bailarinas pelo canto dos olhos, ao mesmo tempo que, pelo outro canto dos olhos, via meus colegas do tambor. Com o foco da visão, tentava mirar fixamente o professor e seu tambor, mostrando os toques que precisávamos fazer.
Tem gente que nunca sentiu algo assim como um superestímulo. Pra mim, prestar atenção na aula já era o suficiente, tamanha a densidade de conteúdos que ele estava passando. Mas não sou capaz: meus olhos e atenção são puxados pra tudo que acontece à minha volta, e esses estímulos além do principal fazem um ansioso ficar observando o que acontece ao seu redor ininterruptamente, mesmo sem estar buscando nada que aqueles olhares vão dar.
Mesmo com isso, mantive o foco absoluto no professor. Mas o barulho de 30 tambores, as palmas em outro ritmo das professoras de dança, os pés das bailarinas se mexendo na visão periférica, tudo isso é demais pra conciliar com uma tentativa de hiperfoco no professor.
Quando fez um intervalo, saí praticamente correndo pro lado de fora do lugar. Um cara que saiu pra fumar perguntou se tava tudo bem, eu disse que sim e expliquei um pouco: é muita informação, preciso dar uma descansada na cabeça porque to ansiosa. Ele não perguntou muito, inclusive respondi coisas além do que ele questionou, senti necessidade de explicar; mas ele nem me ignorou e nem ficou superinteressado na história, o que foi bom, talvez ele compreenda um pouco de ansiedade.
Mais umas três pessoas perguntaram isso, e cada uma teve uma reação diferente. Pra uma eu disse sim, to tranqui, e isso bastou pra ela. Pro professor, respondi que sim e que a aula tava sendo incrível, só era coisa demais e eu precisava descansar. Pra outra, respondi que eu tava com estímulos demais e isso me dava ansiedade, e ela foi incapaz de responder. Perguntou perguntas sem resposta, e percebi várias vezes que ela era simplesmente incapaz de entender porque nunca sentiu algo parecido. O que é estranho pra mim, alguém que tem isso como sendo a normalidade.
Pensei sobre isso. Talvez eu fosse a única pessoa ali que tava sentindo algo do tipo. Pensei que, talvez, é sempre assim, só eu to sentindo isso. E, além disso, os outros não podem nem imaginar o que to sentindo, porque é impossível entender.
Nesses momentos, faço o que preciso fazer. Em outra situação que se seguiu a essas aulas, peguei carona com alguém que pra mim conviver é muito ansiogênico e ele me colocou em uma série de situações ansiogênicas uma pior que a outra. Quando consegui, finalmente, sair do carro, saí praticamente correndo com o meu tambor. Ele e a outra caroneira gritaram algumas vezes Obrigado, De nada, coisas assim, chamando meu nome e estranhando minha ação tão abrupta de fugir daquela série de situações. Olhei pra trás e disse: desculpa, é que eu tava me sentindo mal e precisava sair dali.
Daí, depois que o motorista foi embora, a caroneira veio atrás de mim perguntando se eu tinha dito que tava me sentindo mal, e por que isso. Nesse momento, sendo ela a mesma que não entendeu antes quando falei do superestímulo, justifiquei minha ação assim: tenho transtorno de ansiedade, por isso não soube lidar com essa situação e precisei me retirar. Resposta automaticamente suficiente. Mas por que preciso justificar minha ação com um atestado clínico?
Quero poder agir sem culpa e podendo fazer o que sinto que é melhor pra mim, sem que isso cause tanto espanto e tantos questionamentos. Principalmente se é numa questão como essa, em que não adianta perguntar e obter resposta porque é impossível pra alguém que nunca se sentiu assim saber o que realmente se passa. Assim como é impossível pra mim saber como é não sentir ansiedade.