domingo, 28 de maio de 2023

Superestimulada.

Pra quem começou a ter crises de ansiedade com 10 anos de idade e hoje tem quase 30, ou seja, pra alguém que passou mais anos da vida lidando com isso do que sem se sentir assim, não é possível saber como a vida seria se não fosse dessa forma. Assim como alguém que nasceu cego não consegue imaginar as cores, alguém que não sabe não sentir ansiedade não sabe como é isso. 

Hoje foi a primeira vez na vida em que eu realmente percebi isso. Estava em um taller de candombe com um professor uruguaio, e no mesmo local estava  ocorrendo também o taller de baile de candombe. Sentamos, os tamboreiros, em um círculo de um lado do espaço e as dançarinas ficaram do outro lado. No meu lugar, meio de lado, eu podia ver os movimentos das bailarinas pelo canto dos olhos, ao mesmo tempo que, pelo outro canto dos olhos, via meus colegas do tambor. Com o foco da visão, tentava mirar fixamente o professor e seu tambor, mostrando os toques que precisávamos fazer. 

Tem gente que nunca sentiu algo assim como um superestímulo. Pra mim, prestar atenção na aula já era o suficiente, tamanha a densidade de conteúdos que ele estava passando. Mas não sou capaz: meus olhos e atenção são puxados pra tudo que acontece à minha volta, e esses estímulos além do principal fazem um ansioso ficar observando o que acontece ao seu redor ininterruptamente, mesmo sem estar buscando nada que aqueles olhares vão dar.

Mesmo com isso, mantive o foco absoluto no professor. Mas o barulho de 30 tambores, as palmas em outro ritmo das professoras de dança, os pés das bailarinas se mexendo na visão periférica, tudo isso é demais pra conciliar com uma tentativa de hiperfoco no professor. 

Quando fez um intervalo, saí praticamente correndo pro lado de fora do lugar. Um cara que saiu pra fumar perguntou se tava tudo bem, eu disse que sim e expliquei um pouco: é muita informação, preciso dar uma descansada na cabeça porque to ansiosa. Ele não perguntou muito, inclusive respondi coisas além do que ele questionou, senti necessidade de explicar; mas ele nem me ignorou e nem ficou superinteressado na história, o que foi bom, talvez ele compreenda um pouco de ansiedade.

Mais umas três pessoas perguntaram isso, e cada uma teve uma reação diferente. Pra uma eu disse sim, to tranqui, e isso bastou pra ela. Pro professor, respondi que sim e que a aula tava sendo incrível, só era coisa demais e eu precisava descansar. Pra outra, respondi que eu tava com estímulos demais e isso me dava ansiedade, e ela foi incapaz de responder. Perguntou perguntas sem resposta, e percebi várias vezes que ela era simplesmente incapaz de entender porque nunca sentiu algo parecido. O que é estranho pra mim, alguém que tem isso como sendo a normalidade. 

Pensei sobre isso. Talvez eu fosse a única pessoa ali que tava sentindo algo do tipo. Pensei que, talvez, é sempre assim, só eu to sentindo isso. E, além disso, os outros não podem nem imaginar o que to sentindo, porque é impossível entender. 

Nesses momentos, faço o que preciso fazer. Em outra situação que se seguiu a essas aulas, peguei carona com alguém que pra mim conviver é muito ansiogênico e ele me colocou em uma série de situações ansiogênicas uma pior que a outra. Quando consegui, finalmente, sair do carro, saí praticamente correndo com o meu tambor. Ele e a outra caroneira gritaram algumas vezes Obrigado, De nada, coisas assim, chamando meu nome e estranhando minha ação tão abrupta de fugir daquela série de situações. Olhei pra trás e disse: desculpa, é que eu tava me sentindo mal e precisava sair dali. 

Daí, depois que o motorista foi embora, a caroneira veio atrás de mim perguntando se eu tinha dito que tava me sentindo mal, e por que isso. Nesse momento, sendo ela a mesma que não entendeu antes quando falei do superestímulo, justifiquei minha ação assim: tenho transtorno de ansiedade, por isso não soube lidar com essa situação e precisei me retirar. Resposta automaticamente suficiente. Mas por que preciso justificar minha ação com um atestado clínico?

Quero poder agir sem culpa e podendo fazer o que sinto que é melhor pra mim, sem que isso cause tanto espanto e tantos questionamentos. Principalmente se é numa questão como essa, em que não adianta perguntar e obter resposta porque é impossível pra alguém que nunca se sentiu assim saber o que realmente se passa. Assim como é impossível pra mim saber como é não sentir ansiedade.

Tu tá bem?

O que devo responder quando alguém pergunta se eu to bem, mas a resposta tá além do sim e do não, em um lugar que nem eu mesma compreendo a resposta?

Sim: é mentira, porque a resposta não tá na categoria de dualidade

Não: é mentira também, porque, além de estar fora da categoria de dualidade, vai provocar uma contra-resposta que não vou saber e nem querer responder.

Mais ou menos: não existe meio termo; isso seria como um sem sensação, numa escala linear indo do sim até o não, mas a escala não é essa, inclusive não existe escala. Estando além da dualidade, não existe meio termo.

Melhorando: implica que estava mal e que agora estou ficando bem. De fato não é um estado agradável, mas que ele passe não significa exatamente uma melhora. Pode ser um processo. 

To em processo: alguém vai perguntar que processo, ou o que aconteceu. Essas respostas são complexas demais pra serem ditas, isso quando é possível saber e expressar.

To assimilando: alguém vai perguntar assimilando o quê, ou o que aconteceu. Mesma coisa.

Parece que todas as respostas possíveis vão implicar em uma mentira ou uma contra-resposta em que eu vou precisar explicar algo. A maioria das pessoas ou não quer saber, ou não vai ser capaz de entender. Não vale a pena gastar palavras, energia, sinceridade, pra qualquer um desses dois casos.

O melhor é ser sutil, não demonstrar bruscamente o que está acontecendo, que é o que ando fazendo. Acabo praticamente correndo pra outro lado, seguindo minha intuição do buscar um lugar em que as coisas estejam passando da forma mais próxima possível do contexto que sinto que preciso estar. Isso leva a essas perguntas. Ao mesmo tempo, fingir que tá tudo bem e agir normalmente é o que sempre fiz a vida toda. Como conciliar isso?

Não preciso demonstrar, mas não preciso mentir. Posso agir de forma mais tranquila e sumir da situação, sem causar espanto e até sem ser percebida. Se perguntarem outro dia, melhor, aí vou ter mais capacidade de responder. 

Se eu to bem?

Não sei.

Essa é outra resposta que causa dúvida em quem ouve, e causa também uma culpa de não saber explicar o que a pessoa quer saber. Se respondem perguntando: como assim? É quase obrigatório dar a explicação de por que eu não sei. Mas essa explicação simplesmente não existe, eu não sei porque não sei, eu faço terapia porque não sei e mesmo assim não descubro, e, sinceramente, tem coisas que a gente não precisa saber, nem nós mesmos e nem nenhum outro.

É tudo tão complexo. Acho que essa foi a melhor forma de expressar o que to sentindo. 

No fim, qualquer coisa que não for um sim não vai ser bem recebida. É como se não pudesse existir outro estado além do bem, que é o estado desejado e desejável que todos estejam. Como explicar que não é preciso estar bem, mas que isso não significa que não esteja tudo bem/esteja tudo mal?


domingo, 21 de maio de 2023

Trabalho braçal.

Hoje aprendi a usar algumas ferramentas da agricultura.

Inseparável de quem trabalha na lida é o facão, sempre na cintura. Nos guia e protege, abrindo os caminhos e dizendo que podemos passar. Com ele, abrimos as trilhas já existentes e podemos desbravar o ambiente descobrindo novos rumos. Facão na mão, não há nada que não possa ser trilhado ou criado. Uma expansão do braço que é fluida, corta o que não se deseja e molda o que é preciso modificar. Pode se tornar um perigo pra quem não tem coragem, mas a tentativa e olhar atento ensinam seu uso.

Uma extensão maior ainda do braço é a foice, que chega até lugares mais distantes pra expandir os rumos que vislumbramos. Enxerga o que o facão não vê, o que vem mais de cima ou mais de baixo, na distância mais imaginada do que vista. Com sua lâmina criamos meias-luas e círculos aos nossos lados, baixando cipós e galhos, desenredando as teias reais e imaginárias do que nos pode prender. 

A enxada é bruta e terna de uma só vez, batendo com força pra retirar plantas indesejadas e amolecer a terra. Cria um ambiente agradável, mais fácil de se respirar quando imerso nele. Revira a terra trazendo coisas à tona e derruba o que vem se espalhando e trepando sobre nossas bases. Tudo o que se move se transforma, e esse é o potencial de mistura dos elementos, criando o berço pra que algo possa nascer.

Mais forte e intensa do que a enxada é a grande e pesada picareta, abridora de buracos, quebradora de pedras. Com seu peso, rompe o que impede que as raízes ultrapassem, o que não deixa sementes se estabelecerem, o que precisa sair pra que outra coisa possa aparecer. Permite que se veja o que há nas profundezas da terra, os segredos escuros por baixo da superfície, os corredores secretos dos seres minúsculos. Faz subir o cheiro do que está escondido e quebrar o que impede que algo cresça, pra uma semente ou muda poder ser plantada com acesso à energia de todos os estratos.

A pá por sua vez é o movimento que leva um suprimento de um lugar ao outro, que libera espaço e ajuda a carregar mais rapidamente algo que demoraria mais pra se movimentar. Tirando pedras, terra, folhas, permite a mudança e a reviravolta. 

Já a lima é uma chave importante. Pequena e invisível da lida, tem seu papel essencial na potencialização das ferramentas. É o que permite que elas trabalhem, fazendo o fio e dando funcionalidade. Com seus detalhes e sutilezas, ao mesmo tempo que sua força de desgaste cria a lâmina que corta e faz o trabalho prosseguir. Sem essa ferramenta tantas vezes esquecida, o manejo dos espaços seria impossível. A lima é a preparação, o que traz a força das ideias à realidade concreta e permite que o primeiro passo seja dado. É como o fogo que se acende no peito trazendo a realidade da ação imaginada.

Aprendo muito com as ferramentas, sobre o trabalho e sobre mim. Tudo o que se descobre, as similaridades do fora e do dentro, que parecem separados mas são um só. Ser função num sistema, ser objeto que molda, ser natureza que cria, ser natureza que é criada a cada instante, cada aprendizado, cada sentimento, cada intuição. Cada cheiro de terra, cor de fruto e textura de folha, cada som de facão, enxada e lixa, cada lampejo que passa por dentro, tudo é trabalho, e o real significado do trabalho é que seja parte indispensável da vida, não pelo outro mas por si: pra se criar um motivo de viver. 


sexta-feira, 19 de maio de 2023

V de espadas.

 O tarô, como sempre, me dá uma grande lição; eu queria perguntar sobre os motivos da ansiedade que sinto e o que devo fazer pra me sentir melhor, mas nem precisei, porque na minha carta semanal do conselho da lunação já me veio essa resposta.

Ainda sou estudante do baralho de Marselha, como acho que pra sempre vou ser. O que penso sobre o V de espadas é a instabilidade mental e conflitos transponíveis, algo que se estabelece depois de uma estagnação pra ser ultrapassado, não sem alguma dificuldade, e finalizar em uma harmonia. 



Meus estudos são sempre com Marselha, mas gosto de usar Waite como uma forma de expandir o significado dos números e naipes, sempre cuidando pra não me apegar à imagem desenhada; penso que isso pode ser limitante, mas vejo como um auxílio pra quem tá aprendendo. Assim, olhei a imagem e percebi a derrota em uma batalha, dois perdedores e um vencedor. Sendo espadas o naipe da mente, lembro de uma frase que meu pai costuma dizer: "quando algo não tem solução, já está solucionado". 

Essa derrota mostrada na carta toma forma também de uma desistência, visto que as pessoas ao fundo ainda estão vivas e aparentemente sem ferimentos; na verdade não parecem ter perdido, mas decidido ir embora. Foi uma escolha, antes de serem incapazes. Solucionaram sem buscar uma solução ativamente, mas aceitando a única solução possível.

Com isso compreendi o que minhas próprias palavras disseram quando olharam pra essa carta como meu conselho da semana: instabilidade mental e conflitos transponíveis mostram que um excesso de pensamentos não leva a algo construtivo senão a derrota, que mostra a sabedoria em transpor esse conflito através da desistência pra que novos caminhos possam ser trilhados. 

O momento pessoal que vivo é de muita ansiedade, e percebi, com isso, que quero coisas demais ao mesmo tempo e tento exercer todas elas, obviamente sem sucesso na maioria. Tenho dois trabalhos, a faculdade, quero tocar bem vários instrumentos e compor músicas, escrever poemas e outros textos, ler poesia, literatura e trabalhos sobre temáticas que me interesso, quero me alimentar bem e me exercitar na academia, pedalando, no yoga e aprendendo a dançar, meditar, aprender a mexer na câmera fotográfica que tenho e tirar fotos de plantas e paisagens, terminar minha carteira de motorista, dar rolê na noite com amizades, ver amizades sem ser em rolê, aprender a falar espanhol, não deixar o inglês de lado, estudar tarô, exercer minha magia, e além disso tudo resolver situações que nem existem, como três relacionamentos irreais e dificuldades de um intercâmbio que ainda não fui selecionada. Coisas demais pra focar. Não existem prioridades; ou é uma prioridade, ou não é. E o que é minha prioridade, o que é meu foco, e o que são as demais coisas mais importantes e que quero realmente realizar agora?

O naipe de espadas sempre vem atrás de mim, aqui com meu sol e mercúrio em virgem e lua em capricórnio, além dos aspectos que me fazem ter dificuldade em entender sentimentos e comunicar eles pra mim mesmo. Sempre a mente, sempre a ansiedade que não cessa; o V de espadas vem me trazer muita sabedoria em um momento óbvio que não tinha percebido o que fazer. E vem me relembrar o ensinamento que meu pai fala repetidamente desde que eu era criança, e que por muito tempo não dei valor e até achei irrelevante ser repetido tantas vezes. Mas é verdade: se não tem solução, tá solucionado.

A sabedoria dessa carta, nesse meu momento, é a de desistir dessa briga com o tempo e com minha própria energia. Às vezes, a derrota é uma vitória e o único jeito de sair vitorioso. 

sábado, 13 de maio de 2023

Felicidade.

Um dia me peguei observando um grupo de 100 crianças brincando em um grande campo. Elas corriam, chutavam bolas, pulavam cordas, se escondiam, gritavam, mexiam seus pequenos corpinhos com seus sorrisos no rosto. 

Quando eu era criança, não me identificava com os outros da minha idade e tinha a tendência de achar todos eles idiotas. Fui uma criança parada, silenciosa, envergonhada, reprimida e, por isso, julgadora. Enquanto observava aqueles montes de criancinhas, meu primeiro pensamento foi o mesmo da minha infância: que idiotas, pra que ficar correndo e gritando? E meu segundo pensamento, pela primeira vez, tentou buscar essa resposta. 

Como não tinha outra coisa a fazer senão isso, fiquei ali sentada observando de longe. Adultos dão vários motivos pra necessidade das crianças brincarem; o desenvolvimento da coordenação motora, da força muscular, de habilidades espaciais, de relações sociais, construção de identidade, imaginação, isso entre as que pensei agora. Mas, pras crianças, nada disso interessa, elas não possuem esses motivos. Por quê, então?

Se não pensam em fazer amizades, se não pensam em desenvolver seus corpos, mentes e emoções, pra que ficar fazendo coisas aparentemente tão sem sentido? Então me veio a resposta: pra gerar felicidade. Não há outro motivo pra brincadeira senão o de gerar felicidade, acender algo dentro de si que vai agir como uma energia, um impulso que traz sensações boas.

Perceber isso me entristeceu e me fez pensar. Me deu vontade de sair correndo e começar a ir atrás das criancinhas, gritando junto a elas, compartilhando seus brinquedos e brincadeiras, mas algo me impediu. Um pouco de preguiça, de frustração, de culpa, de vergonha, de incapacidade também, não sei exatamente. Além da tristeza, a pergunta: o que eu faço exclusivamente com a intenção de ser feliz? O que eu faço que me acende algo dentro do peito, que me faz ter vontade de viver, de agir no mundo, que me dá a força física de levantar o corpo e exercer o que quer que seja?

Me percebi em um ciclo vicioso. Não tenho energia, então não consigo realizar coisas pra mim; não consigo realizar coisas pra mim, então não tenho energia, porque é isso que gera a vontade de viver. As coisas sem sentido são as que dão força de vontade pra exercer as tarefas necessárias da vida, as coisas sem sentido que colocam a felicidade de conseguir viver. A realização da criatividade pela criatividade, do movimento físico pelo movimento, da espontaneidade apenas pela expressão, sem a intenção de mostrar pros outros, de produzir uma obra, de se exercitar, é o que nos faz ser felizes. E me entristeceu perceber que não faço isso.

Pensei sobre todas as coisas que eu gosto; de tocar instrumentos, mas tenho vergonha mesmo de ensaiar pra mim mesmo porque me comparo aos outros, me considero ruim, penso que tenho que poder mostrar isso pra alguém com propriedade e assim perco a espontaneidade e não tenho a energia necessária pra fazer. Escrever, mas na hora que tenho as ideias não paro de fazer o que estou fazendo pra colocar elas no papel e quando decido fazer isso, acaba sendo um compromisso conseguir escrever e, além disso, escrever algo de valor estético e poético, e assim travo e não acontece. De me movimentar, mas tenho vergonha dos meus movimentos e julgamentos que posso receber sobre eles, mesmo que saiba que na verdade a única pessoa que está julgando sou eu mesma, além da preguiça e falta de energia pra mover mais do que alguns dedos pra escrever essas palavras. De observar paisagens e meditar, mas o tempo é tão curto e tenho tantas coisas a fazer que isso acaba sendo um desperdício dos míseros poucos minutos que me dedicaria nessa atenção.

Consigo identificar algumas coisas que me deixam feliz com esse único objetivo, mas acabam sendo ilusórias porque não passa de um engano. Posso me embebedar, fumar maconha, fazer uso de qualquer substância que sei que vai me trazer bons momentos de diversão e felicidade, mas não é o suficiente pra gerar essa chama no peito que dá vontade de viver.

To procurando. Mas o pior dessa procura é encontrar, mas não conseguir exercer e prosseguir sentindo vazio, triste e frustrado com a vida, que é tão linda.