terça-feira, 18 de abril de 2023

A Sacerdotisa e A Justiça.


O dois e o oito: ambos números de equilíbrio. Nunca tinha me dado conta de como essas duas cartas de Marselha são tão parecidas até tirá-las conjuntamente como um conselho. A intenção era apenas uma carta, como peço a cada entrada de lunação, mas dessa vez, sem perceber, peguei duas como sendo uma só e apenas aceitei porque o tarô nunca erra em seus sinais. Foi um espanto perceber dois arcanos maiores, algo que não acontece tão frequentemente considerando a relação de quantidade entre estes e os menores. E ainda dois tão semelhantes.

A mensagem demorou um pouco pra aparecer, e veio a partir das comparações. Primeiro as semelhanças: o manto azul sobre o vestido vermelho, os pés cobertos, as mãos segurando algo à frente, o dourado dos adornos, as coroas, a posição sentada, o rosto sereno, o objeto cadeira/manto atrás da personagem em formato parecido. Depois, as diferenças, mais sutis: os objetos diversos nas mãos, sendo um livro na sacerdotisa e uma espada e uma balança na justiça, a direção do olhar, para a esquerda ou para a frente, a fluidez ou rigidez do plano de fundo, o número. 

Como força yin, as duas chamam o olhar para nós mesmos, para os próprios processos internos ou, mesmo quando externos, baseados na subjetividade. Meu recado da semana foi pra ler o livro de mim mesmo, olhando pra dentro e imergindo nos meus sentimentos e fantasias, e a partir disso  observar e avaliar, com coragem e parcimônia, o que fica e o que deve ir. 

Um recado especial me deram os planos de fundo das duas cartas: enquanto a Sacerdotisa tem uma cortina solta, com ondas e curvas, a Justiça tem uma cadeira perfeitamente sóbria e simétrica. Essas formas lembram asas, o que me mostra pra viajar nesse material interno, pra voar por todos os cantos de mim, me permitindo planar pra fazer essa observação e avaliação atenta. Sinto também o recado de organizar esse material amplo, que é bagunçado nas primeiras asas que olham pra trás e organizado nas asas que olham pra frente, impelindo a uma clareza de visão, assim como o terceiro olho na fronte. 

Outras mensagens de internalização aparecem nos pés, que na verdade não aparecem, e no manto azul que recobre o vermelho. É pra que eu voe cobrindo a racionalidade e sem os pés no chão; que a história desse livro da vida possa ser lida com a intuição, pra isso usando a coragem e as ferramentas disponíveis pra trazer o equilíbrio. Mas que seja fluido como os panos, como as águas, como uma balança estabilizando um peso, como um vento que sacode asas, como as ondas que o inconsciente traz de fundos tão fundos. 

São sábias mulheres que muito ensinam em suas figuras tão estáticas de papel e tinta, mas tão móveis em todos os olhares e sentidos que nos podem trazer. 


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Não me leve a mal.

Tive que me obrigar a perder parte da minha inocência pra ser capaz de viver nesse mundo, e, mesmo assim, não foi suficiente. A parte que sobrou duvida que algumas coisas são realidade, e, quando percebe que é verdade, já não há mais tempo pra reagir. Enquanto isso, o outro lado vive sua vida normal de homem que arranja desculpas e se vitimiza pra justificar um assédio, e é legitimado pela falta do constrangimento que não fui capaz de proporcionar. 

Um dia inteiro me oferecendo cerveja, me chamando de longe pra encher meu copo, falando comigo em inglês e cantando músicas românticas. Na inocência, pensei ser só a ação de um velho bêbado sendo de seu próprio tempo, e justamente é esse o problema: ele era exatamente isso, um velho bêbado do seu próprio tempo, o que foi justificativa suficiente pra que, na primeira oportunidade, se grudasse nas minhas costas enquanto eu lavava um copo na pia.

Pediu desculpas, não me leva a mal, achei que tu fosse ela, e aponta pra outra mulher próxima, como se nela ele pudesse fazer o que havia feito; provavelmente nem a conhecia. A minha resposta foi só um qual é que é meu, respondida por um não me leva a mal não, e pronto: mais um homem que vai continuar sendo exatamente como é. 

É tão difícil isso de ser responsável até pelo assédio que recebo, pensando que pra mudar algo, pra isso não acontecer de novo, sou eu que preciso reagir, eu que preciso fazer algo. Eu que preciso ser responsável por dizer de alguma forma, seja branda ou bruta, pro velho homem branco que ele agiu mal. É quem sofre que fica a cargo, primeiramente, de ensinar o assediador, já não bastasse todo o peso de ser assediado. E, assim, acaba não mudando muita coisa, por já ser gasto demais de energia ter sofrido isso até pra poder reagir no momento. É mais fácil deixar assim mesmo e não se preocupar, pra não se incomodar com a resposta justificadora e sem razão do outro. 

Mas não quero que seja assim. Quero, primeiramente, não passar por isso de novo, mas, caso aconteça, não ser inocente o suficiente pra pensar à primeira vista que foi sem querer, e, à segunda vista, pra não ter palavras de repulsa pra expor o ato. Quem não tem razão é que tá vencendo na sociedade. É um peso ter razão e ser tomado como louco, mas peso maior ainda, pra todas, é ter que ficar em silêncio.

sábado, 15 de abril de 2023

Cegueira colonialista.

 Tem coisas que algumas pessoas não conseguem entender, por estarem demasiadamente concentradas no próprio ego. Presenciei algo assim há poucos dias, experiência que foi potencializada por uso de psicodélicos, fato que não retira a veracidade do relato e inclusive o torna ainda mais real. Era um show em um festival de música; Ọ̀ṣẹ́ẹ̀túrá Africa'n Jazz no Festival Pira Rural. Foi algo inacreditável. O artista principal era um nigeriano, Akin, tocando bateria e dividindo o palco com uma percussionista, uma baixista e um saxofonista. Inacreditável é o adjetivo que tenho pra isso, fiquei refletindo sobre como era possível ensaiar coisas tão absurdamente complexas, pensando onde estavam os limites dos combinados e da improvisação e em como cabia na cabeça daqueles músicos coisas tão virtuosas assim. Parecia que cada um tocava seu instrumento em um ciclo dividido em tempos diferentes dos tempos do outro, se sobrepondo de formas difíceis de compreender, mas que em algum momento se encaixavam de novo perfeitamente e seguiam seu caminho conjunto até se perderem em outros rumos distantes pra depois se encontrar de novo, em ciclos musicais de altíssima qualidade. Mas o que venho contar não é sobre a música em si, mas sim sobre a falta de capacidade de escuta, não apenas da música.

No palco era um nigeriano que convidou outros dois músicos, um de Angola, o Kizua, e um da Costa do Marfim, o Loua, que inclusive é conhecido meu e me trouxe uma admiração tremenda ver o quão absurdo ele é como músico. Akin, entre as músicas, falava um pouco com a plateia sobre temas da cultura africana e dava sua real contando as impressões sobre os outros e sua visão do racismo vivendo no Brasil. Ele disse que, quando se ouve uma pessoa negra falando de sua cultura, não se deve pressupor os motivos de algo ser assim ou daquele outro jeito baseado em preconceitos, mas sim buscar saber o real motivo das coisas, perguntar, procurar entender. É comum pensar que uma cultura age de tal forma por tal e tal motivo, o que é sempre um pressuposto racista e colonizador de quem pensa que sabe de tudo e se vê como superior, sem conseguir abrir os sentidos pra outras vivências além da sua, colonizadora. E foi nesse contexto que o artista foi repetidamente alvo de tentativas de silenciamento através de manifestações da plateia, branca, batendo palmas incessantes e gritando frases como "fora colonialismo" enquanto um negro, nigeriano, africano, olhava de cima de um palco dizendo resumidamente, "não sejam colonialistas" e ouvia dessa plateia a simples resposta: "não estou te ouvindo", egoicamente mostrando sua falta de empatia e desinteresse completo em compreender o outro. 

Como se não bastasse, a falta de escuta não foi apenas no discurso, mas também na música. Era algo a ser contemplado, com atenção diferenciada, mas eu e alguns amigos percebíamos como aquilo era tido por muitos como apenas uma festa qualquer, uma música legal pra ficar louco, pra gritar, tomar um trago, sem entrar na complexidade da mistura do Brasil com a África, com elementos do jazz, tambores, rap, línguas nativas, cantos étnicos, reais anticoloniais, toda a força e intensidade daquelas influências tão diversas que formaram algo tão único como o que estava à nossa frente. Nada importava, enquanto eu e algumas pessoas mais interessadas e sensíveis estávamos quase que hipnotizados olhando aquele verdadeiro show. Foi bem frustrante pra mim perceber esse racismo nada sutil, essa falta de empatia, de interesse, esse excesso de loucura que não dá valor pra coisas fantásticas que dificilmente se tem a oportunidade de ver. A música como algo que pode nos levar a tantos lugares, ensinar tanto, trazer tantos sentimentos, lampejos, ter tanta intensidade. Compartilhei isso com amigos que concordaram comigo e sentiram o mesmo: eles simplesmente não entendem. Mas nós entendemos e fomos tocados profundamente pela arte multicultural, essa coisa tão potente que o Brasil é capaz de proporcionar a quem é capaz de ver. 

Visita à gruta.

 Ainda não comecei a escrever meu novo diário. Por algum motivo, ando sentindo atração pelas palavras escritas aqui nesse blog, depois de tantos anos. Ando querendo retomar minhas memórias, quero rever toda minha vida a partir dos diários antigos; ao mesmo tempo que é excitante, é também amedrontador. O que será que o passado tem a dizer sobre mim hoje?

Imaginei um altar a mim mesme, como uma biblioteca da minha vida. Seria bonito. Todos os diários, um do lado do outro, sendo livros como uma série a ser explorada do início ao "fim", sendo o fim, o presente. E que presente. Sinto que é isso mesmo a minha vida agora, um presente que me dei a mim mesme. Um presente artesanal, que fui construindo com o tempo e minhas vivências. E que lindas vivências, mesmo as mais sofridas me trazendo belezas, ternuras, aprendizados e tudo o que sou hoje. Esse tudo que tanto gosto. 

Mas tem algo que preciso deixar morrer, e talvez esse reviver do passado seja parte importante do processo. Talvez esse algo seja tão antigo, que mal percebo sua existência. O que será? Parece que as respostas estão em grutas profundas, aguadas, com estalactites e estalagmites, pingando das pontas, sublimando, refletindo, um lugar que parece que conheço de uma meditação guiada que fiz certa vez. O espaço com as pedras, cujas raízes da árvore que eu era se enozavam e que me fizeram chorar naquela primeira vez que visitei esse espaço na minha mente. Essas lágrimas talvez ainda estejam lá, talvez ainda estejam aqui apesar dessa minha felicidade contemporânea. Tem coisas mais fundas do que posso imaginar. E preciso trazê-las à tona.