sábado, 30 de setembro de 2023

Distração.

Tem dias que não consigo entender o que os outros falam. Faz pouco tempo que percebi isso, mas acho que sempre me aconteceu. Talvez se intensifique um pouco por causa do idioma, e to aprendendo a aceitar esse tipo de coisa. Teve um tempo que eu ficava incomodada por não entender algo, não gostava de perguntar a mesma coisa várias vezes, pensava que tava incomodando. Era um problema que eu queria reverter. Sinto que agora to cada vez me entendendo mais, percebendo meus padrões de comportamento e os motivos de algumas coisas acontecerem às vezes. Sinto que paro de entender o que os outros dizem quando me sinto ansiosa, quando passa algo complicado, quando to num momento introspectivo seja lá qual seja o motivo. To entendendo que isso é normal, que mudamos não só em grandes períodos de tempo as grandes mudanças, mas também pequenas mudanças que ocorrem durante os dias. Os sentimentos são sutis, e tem que ter atenção pra notar. Também se tem que estar aberto pra sentir e aceitar essas diferenças, que são passageiras e todas parte do que sou. 

Prefiro sempre ter atenção nas pessoas e entender o que tentam me comunicar, mas tem vezes que não dá. Tem vezes que tá tão difícil as próprias coisas, que já tem pouca atenção pra mim mesmo, confusões e o que mais possa estar acontecendo, ou mesmo sem motivo algum aparentemente, que é necessário aceitar e desligar um pouco o externo. Acho que de qualquer forma é um pouco incômodo pros outros, mas o mais importante é que é incômodo pra mim ter que gastar uma energia que não tenho pra algo que não é meu. O corpo grita pra ser ouvido, no seu silêncio de sensações. Agora consigo ver esse tipo de coisa como um sinal, como algo que tenho que observar em mim mesmo e tentar descobrir o motivo do cansaço, da desatenção, da incapacidade. Mas, mais que descobrir o motivo, o importante é respeitar esses sinais e não exercer esse tipo de violência sutil sobre si mesmo de ignorar o que acontece pra não ser julgado de algo pelos outros. No fim, ninguém sabe o que se passa dentro de cada um, e por isso o respeito mais importante é o por si mesmo. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Cochabamba.

Ruidosa rua
Pela janela aberta.
A pomba
Está morrendo na praça.
Estão trocando as flores
Que estão secando na praça.
O chafariz de água
Também precisa ser limpo.
As flores caídas no chão
Recolhidas pela cholita.
Os refrescos,
As bactérias
Que os intestinos não conhecem.
Buzinas e adelantes
Pijchando coca.
Pelos pela comida,
Carrinhos de mão,
Amendoim e palta.
Alasitas,
Qual meu pedido?
Que miniatura comprar
Pra pedir o que não sei?
Que a Virgem de Urkupiña
Me ensine a bailar.
Os diabos das minas
Com seus brilhos e fogos,
Suas roupas e máscaras
Estão querendo fugir.
Zampoñas e trompetes,
Tambores e militares.
Do terraço
Vejo montanhas que tiram o ar.
Bosque boliviano-tucumano,
Bicicletas quebradas,
Grandes distâncias.
O lago está seco,
Os narizes sangram.
Cada um aqui vive um tempo diferente.
Quanto mais perto do sol
E em mais baixas altitudes
Mais queima.
A poesia dá sono,
A coca machucada.
Pia entupida,
Água transbordando.
E a pomba, já morreu?
Os pães no lixo,
O vento forte,
A cultura calorosa.
Caminho pelas ruas
Que a chuva não molha
Mas sempre há passos
E diferentes pneus.
O Cristo nos observa,
Brilha em cima do morro.
Cinquenta centavos de boliviano,
Tantas palavras desconhecidas
E tanto mais a conhecer.
Seco, tudo é seco,
Mas se molha todos os dias.
O dente de leão
Facilmente volta a florescer.
Cochabamba está em fruto
E não são exóticas invasoras.
Tudo que meus olhos veem
E o que os ouvidos ouvem,
Em quechua e español,
Tão distante da metrópole,
Tão nativo dessa terra.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Santa Cruz de la Sierra.

Minhas primeiras impressões na Bolívia começaram no avião, chegando de São Paulo a Santa Cruz de la Sierra. Eu, que não tinha pesquisado muito antes de partir, imaginava que ia chegar e ver montanhas, Bolívia já era sinônimo dos Andes, mesmo sabendo do grande espaço do território que não é montanhoso. Olhava pelas janelas procurando elevações e não via nada, e me estranhava que cada vez via menos; via algumas plantações, llanuras sin fin, e aos poucos foram cada vez mais sumindo no meio de uma poeira amarronzada. Enquanto pousava, me estranhava ver tantas palmeiras. Como pode ter tanta palmeira em um país completamente continental? Foi meu contato com a tropicalidade da Bolívia, não tem praia, mas tem palmeiras. Muy raro. Não entendia nada. 

Já via o vento das janelas do avião enquanto pousava. Via mesmo, porque parecia muito poeirento, e parecia também muito forte porque as folhas das palmeiras eram claramente voltadas pra um lado e se balançavam. Saí do aeroporto e comprovei: muito vento, muita poeira. Sentia os grãos entrando no meu nariz, sentia muito calor porque meus casacos não cabiam na mala e eu precisava usar todos, era golpeada pelo vento como as copas das palmeiras já tão inclinadas pelos anos de ventania. Não esperava tanto calor, nem tanto vento. Nem as palmeiras, fiquei perplexa em ver tantas, e não qualquer palmeira, mas coco. Coco mesmo, ficava olhando e questionando se era isso realmente porque na minha cabeça de botânico em formação não fazia sentido ter esses cocos ali. Pensava neles como muito característicos do litoral brasileiro, mas, pensando agora, óbvio que não. 

E fui numa llanura em meio ao sol do meio dia, tão mais claro e forte do que o que eu estava acostumada, pegar uma van pro centro da cidade. Me sinto tão segura sozinha sem saber exatamente pra onde tô indo. Tava morrendo de fome e não sabia o nome de nenhuma comida, recém chegada em terras hispanohablantes. Esperava uma cidade maior, com prédios, construções e vi algo muito mais sencillo, me espantei com a quantidade de gente vendendo coisas na rua, mas me senti muito bem apesar do peso das mochilas, da fome, do calor. Apontei pra um bolo, não queria perguntar nada além de onde pegar o ônibus pra onde eu tava indo. Não sabiam me responder, mas consegui encontrar sozinha. Gosto de ir yendo, sem perguntar, sem confirmar, mas com a segurança do mapa em mãos. Nada pode dar tão errado.

No outro dia, me levaram de moto pra conhecer o Jardim Botânico. Nos perdemos um pouco e caminhamos um montão. Adorei ver as plantas frutíferas parecidas com as que eu já conheço, reconhecer gêneros e famílias, ver elas ali ocorrendo tão iguais e tão diferentes em um local tão longe. Andamos em umas partes que estava escrito pra não ir porque podíamos nos perder, mas meu acompanhante disse que já tinha ido e não parecia nada propício a não se encontrar outra vez. Devemos ter andado por umas duas horas, sem água e no calor queimando minha pele. Mas foi lindo ver o quanto a vegetação muda em trechos tão curtos, claramente notável a diferença dos bosques mais secos, queimados de sol, baixos, retorcidos, pros mais úmidos, com árvores grandes, mais verdes, altas. Me encanta perceber que aqui tem tal planta e logo ali não tem mais, e perceber as sutilezas não tão sutis das diferenças de solo, água, incidência solar na estrutura dos bosques. A semelhança é que todas estavam igualmente marrons de poeira. 

No outro dia, a viagem foi linda. De ônibus de Santa Cruz hacia Cochabamba. Foi uma tortura os cinco filmes seguidos sobre animais que fui obrigada a assistir em volume mais alto que o necessário, me atacando a ansiedade, mas a vista da janela foi maravilhosa. Pude ver a mudança de vegetação com a altitude, começando pelo chaco seco de Santa Cruz com palmeiras e gramas, passando por um bosque baixo, depois uma neblina e a vegetação de yungas (creio) verde e grande como uma floresta pluvial, inclusive com plantas conhecidas como as mais marcantes jussaras e embaúbas. Depois tudo começou a secar, depois de subir um pouco as montanhas, e eu via paredões com gramas secas, bromélias e cactos até escurecer e não mais poder ver nada quando já estava entrando nas urbanizações. 

Assim cheguei a Cochabamba, depois de 12 horas encantadoras de observação de paisagens maravilhosas pelos gradientes vegetacionais desconhecidos da Bolívia. Pensava não querer voltar a Santa Cruz, mas na verdade resolvi escrever isso justamente por estar pesquisando outras coisas pra fazer por lá. Espero voltar em breve pra conhecer las lomas de arena e também Samaipata, e também outros lugares desse país tão cheio de coisas pra descobrir. 


quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Metrópoles.

Em outras viagens, pensei sobre como as metrópoles são homogeneizantes. Conhecendo Porto Alegre, fui pra Buenos Aires e achei uma Porto Alegre maior. Indo a São Paulo, me pareceu a mesma coisa só que maior ainda em alguns aspectos. Me sinto em casa em lugares assim porque me é tudo familiar, mesmo com particularidades. Porto Alegre tem o diferencial de ter um lago, os prédios modernos e antigos não são tão grandes, a urbanização foi bem irregular e construções clássicas e modernas, pequenas e grandes, coloridas e grises, altas e baixas, convivem num mesmo espaço. Em Buenos Aires é tudo extremamente grandioso e mais ou menos contemporâneo em unidade, sendo todas as construções igualmente magnânimas e antigas; as ruas principais são muito largas e compridas, enquanto as outras são muito pequenas e estreitas. Já São Paulo é grandiosa de outra forma, a maioria dos prédios é excessivamente alta e relativamente estreitos, a maioria modernos, entre os quais corre um trânsito caótico como o de outras metrópoles. Semelhança entre São Paulo e Buenos Aires é que nas duas não pega sol nas ruas devido ao tamanho das construções, o que me incomoda muito.

Apesar das diferenças, são relativamente iguais em suas lojas, restaurantes, supermercados, praças, carros, pedestres, murais pintados, pixos, outdoors, coisas pra fazer. Parece que as metrópoles falam a mesma língua, parece que as metrópoles são como as farmácias São João, com um roteiro exato de como se estabelecerem. Inclusive, há muitas redes de comércios estabelecidas, que tende a homogeneizar tudo. Não gosto disso, mas me é familiar. Estando na Bolívia, percebi que acabo sim gostando dessa homogeneização, justamente por me fazer sentir em um lugar seguro.

Aqui é tudo diferente e fora dos padrões do que me é conhecido. O comércio informal domina tudo, e nos lugares mais estabelecidos não existe o padrão de onde estarem as coisas. Não existem também as mesmas coisas, o que é muito bom, mas me estranha. Quando chegam as dificuldades, só quero  que tenha algo familiar pra poder me apegar e sentir tranquila. Não sei onde encontrar o que preciso, me sinto perdida ao ver tanta feira tanto objeto aleatório tanta comida tanta cor tanto grito tanta gente. Me dá vontade de fugir e não consigo nem apreciar a diversidade, a novidade de algo que sei que é tão lindo mas que acabo não conseguindo admirar.

Era exatamente o que eu queria, vir pro lugar mais distante e mais diferente quanto possível, mas agora, aqui, me é muito custoso. Me assusta, ao mesmo tempo que é exatamente o que eu buscava. Gosto da mudança, mas sou resistente. Exercitar a paciência e a abertura são meus desafios.