Tem uma coisa muito valiosa pra mim que to aprendendo enquanto vivo aqui na Bolívia, e isso é valorizar a minha própria cultura brasileira.
Quando decidi viajar pro lugar mais distante e diferente que poderia, o que queria era justamente conhecer algo diverso do que vivi toda minha vida. Foi um pouco irônico eu entrar nesse processo justamente no momento que tava me dedicando pra conhecer a cultura gaúcha, que por toda minha vida tinha desprezado de alguma forma. Como nunca tive vivências culturais em família e era uma criança bem julgadora, achava que tudo parecia meio besteira e indigno de atenção. Assim cresci como alguém afastado da cultura local, pela minha índole e pelo distanciamento que minha própria família tem disso.
Outra ironia foi que comecei a me interessar por entender as coisas do sul quando me envolvi com um grupo de resgate cultural afrouruguaio. Começando a tocar candombe, entrei em contato com pessoas bem ligadas à cultura gaúcha que escutam música, tomam mate, vão a CTG, conhecem a história. Antes disso, na graduação, pela questão da paisagem e da vegetação, pude entender um pouco do sentimento do gaúcho com a pampa e isso me deu interesse em me aproximar disso tudo.
E nesse contexto me mudei pra Bolívia, no momento não conhecendo quase nada do que é meu do sul. Quis fazer essa viagem pra entender um pouco da minha identidade latinoamericana como brasileira, porque infelizmente isso com frequência parece muito distanciado. Aqui, me identifico com muitas coisas e outras me são muito diversas. Mas o mais lindo é o quanto essa vivência tá me fazendo conectar, ou pelo menos criar um maior interesse, em conhecer as tradições de onde vim.
Os bolivianos, de maneira geral, amam muito a Bolívia e são muito orgulhosos do seu país e cultura. Logo que cheguei, nos meus primeiros dias fui a uma grande festa religiosa e conheci muitas das danças tradicionais. No momento foi algo mais só dessas pessoas que estavam dançando, que já me encantou muito, mas depois descobri que não só as pessoas que estavam se apresentando dançam, mas em geral todos sabem todas as danças e gostam disso. Se ensina a bailar nas escolas, e, de todas as pessoas que conheci, mesmo as que hoje adultas não gostam de dançar veem o fato de já terem dançado como algo bonito. Nas festas que fui (nas boas, por supuesto), sempre chega uma hora da noite, normalmente mais pro fim, em que começa a tocar as músicas tradicionais de vários estilos. É a parte mais divertida da festa, quando todos parecem dançar com muito mais energia do que estavam nos reggaeton e cumbia.
Em uma dessas entradas folclóricas vi um grupo dançando chacarera, algo que achei inacreditável porque não sabia que isso chegava até a Bolívia. Com isso me senti incomodada por ser do Rio Grande do Sul e simplesmente não saber, até estar aqui e ver pela primeira vez, como se dança uma chacarera. Me perguntaram quais são as danças típicas de onde vim, e eu simplesmente não sei porque nunca tive nenhum contato.
Sempre que me perguntam de onde sou, perguntam também o que to achando da Bolívia e se já conheci as tradições. Querem saber se já fui a pueblitos, se já bebi chicha e guarapo, se já comi os pratos típicos, o que eu mais to gostando de estar aqui. Parecem muito dispostos a me apresentar tudo. E querem saber coisas da minha cultura também, e nesses momentos me sinto meio envergonhada de não saber diversas coisas.
Em relação às comidas, me perguntam também o que é típico do Brasil e fico com dificuldade de responder. O Brasil é imenso e não posso falar de outros lugares que não sejam o sul, mas também não sabia o que responder sobre isso. O clássico é o arroz com feijão, depois me lembrei da a la minuta, e mais gaudério tem o churrasco e o carreteiro. Percebi como sempre vi isso tudo como completamente normal e corriqueiro, mas que na verdade são tradições importantes brasileiras. Nunca pensei na a la minuta como um prato típico até que comecei a viajar e ver outras coisas, como por exemplo o silpancho e o piquemacho.
Um momento lindo que me fez sentir muita vontade de conhecer melhor as tradições foi no día de todos santos, quando montam altares aos mortos que vão vir visitar os vivos por um dia. É um costume lindo. Me perguntaram também o que fazem no Brasil, ao que respondi que só vão ao cemitério limpar os túmulos e trocar as flores pra mais um ano. É uma tradição simples, que em geral minha família leva com um certo tédio e algo de obrigação, e por isso também sempre desprezei isso, assim como sempre desprezei as coisas católicas. Mas ver essas práticas andinas me fez ver as coisas de outra forma, ver como é bonito qualquer tipo de tradição, por mais simples e aparentemente sem significado que seja.
Tradições não precisam ser elaboradas e complexas, na verdade na maioria das vezes são as coisas mais simples, e isso foi um grande aprendizado.
Nunca tinha rezado na minha vida, nem quando estudava em um colégio católico, porque eu não gostava. Nesse dia, não só rezei como rezei em espanhol na casa de muitos desconhecidos pra que a alma dos seus mortos fosse bem. Na infância não fazia o sinal da cruz e me negava a rezar, diziam que eu era desrespeitosa e eu não concordava porque simplesmente tava agindo de acordo com as minhas crenças. Agora igual não tenho essas mesmas crenças, mas não participei dos ritos com uma intenção de brincadeira ou por algum tipo de interesse, mas sim porque valorizo essas ações da cultura e me sinto feliz em poder compartilhar.
Já não vejo as coisas como verdades ou mentiras, mas sim como partes igualmente válidas de práticas culturais igualmente lindas e significativas. Era uma energia muito forte nesse dia, e me deu vontade de fazer parte dessa tradição nesse momento mesmo que não seja da minha crença. Enquanto participava, foi uma realidade e senti isso de forma verdadeira. E com isso aumentou minha vontade de conhecer da cultura que sempre desprezei na minha terra, e também de todas as coisas lindas e intensas que existem, principalmente, pela América.
Não pensava que conhecer tradições tão diferentes e distantes poderia me fazer sentir mais conectada com as raízes de onde vim e com vontade de vivenciar essas raízes. Esse é um aprendizado muito bonito e importante que vou levar dessa grande experiência de viver nos Andes. Mas, por outro lado, não acho que seja verdadeiro dizer que é assim tão diferente e distante... A América Latina tem, sim, uma unidade cultural, por mais diversa que seja, e seja qual for essa unidade, afinal não descobri ainda o que é, me faz sentir parte desse continente do sudoeste do mundo.